O modernismo como movimento cultural

André Botelho e Maurício Hoelz

2022 é um ano intenso: bicentenário da Independência política do Brasil, centenário da Semana de Arte Moderna de São Paulo e eleições presidenciais. Todos esses eventos, além do que estamos vivendo em escala nacional e internacional nos últimos anos, recolocam a democracia no centro da agenda brasileira. O modernismo como movimento cultural. Mário de Andrade, um aprendizado, dos sociólogos André Botelho (UFRJ) e Maurício Hoelz (UFRRJ) participa diretamente desse debate ao discutir os fracassos dos projetos de democratização da cultura de Mário de Andrade ao esbarrarem e serem redefinidos pelas estruturas autocráticas e autoritárias do Estado Novo (1937-1945).

As relações entre modernismo e democracia são revistas no livro de modo inovador por se concentrar não nas trajetórias individuais dos modernistas, tampouco na domesticação dessas relações numa ideia simples e unívoca de identidade nacional. Mário de Andrade emerge no livro como um autor muito mais complexo, que, sim, fez parte do seu tempo, mas também lutou contra ele, contra a sociedade desigual, elitista e eurocêntrica que persiste ainda hoje no Brasil. Seus fracassos pessoais são de todo um projeto de sociedade a que ele deu vida, e a sua própria vida, mobilizando recursos intelectuais, éticos e humanistas, muitos deles forjados no seu catolicismo e em suas convicções igualitárias. O que podemos aprender com a experiência de Mário? O que seus fracassos têm a nos dizer num momento em que o conflito cultural, e não apenas político e econômico, volta à esfera pública da sociedade brasileira de modo tão violento e tão excludente? Como reconhecer um lugar de fala sem excluir um lugar de escuta? A comunicação democrática é ainda possível entre nós? 

Essas são questões de fundo de O modernismo como movimento cultural que, além de participar do debate que o centenário da Semana tem ensejado, até aqui, infelizmente, mais interessado na polêmica do que na problematização, provoca um deslocamento e uma inovação teórica na própria concepção de “modernismo”. Este deixa de ser visto como “movimento de vanguarda artística”, em cujas contradições ele se vê historicamente enredado, e passa a ser visto como um “movimento cultural”: uma forma de ação coletiva que disputa o controle cultural pela mudança da sociedade, enlaçando diferentes gerações. Assim, a aposta do livro é que o que vivemos no presente e o que já sabemos sobre o modernismo (e há muito conhecimento acumulado, embora nem sempre criativo) exige um gesto mais ousado e mais radical teoricamente para requalificar a cultura como um campo aberto de conflito pelo controle dos significados das mudanças na sociedade. Se a posição do indivíduo na sociedade é crucial, sociologicamente, não parece suficiente para definir sua compreensão do mundo social. E é esse o papel da teoria. E ela nunca foi tão urgente.

Mais do que a tragédia da cultura modernista em si mesma, o livro reafirma, então, a riqueza e a potência intelectual, cultural e política do legado de Mário de Andrade para a nossa sociedade. Um legado que, por suas características próprias, especialmente o sentido aberto e inacabado da sua interpretação do Brasil, exige a interação permanente com o outro, com nós mesmos. Trata-se de um aprendizado ligado a um projeto de democratização da cultura na sociedade brasileira a que Mário se entregou por inteiro. E que tem muito a nos ensinar ainda sobre participação social, reconhecimento e democracia. Modernismo em movimento! Mário de Andrade, presente!


André Botelho é professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Presidente da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – Anpocs (2021-2022). Autor, entre outros, de O retorno da sociedade – Política e interpretações do Brasil (Vozes, 2019).

Maurício Hoelz é professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Autor de A violência que nos une (Editora UFMG, no prelo).

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