Infocracia - Digitalização e a crise da democracia

Por: Lucas Machado

 

Em seu “Infocracia – Digitalização e a crise da democracia”, publicado recentemente pela Editora Vozes, no Brasil, Byung-Chul Han apresenta uma análise de nossa sociedade atual que, de muitas maneiras, se mostra particularmente precisa e relevante, sobretudo em nosso contexto de eleições. Isso porque uma grande parte do que está em jogo no livro são, poderíamos dizer, as razões que estariam levando a uma crise generalizada da democracia em todo o mundo, indissociável do atual avanço da extrema direita e do domínio que as redes sociais exercem em nossas vidas.

Falamos em “razões” mas, talvez, fosse apropriado falar de uma razão principal como sendo aquela que é apontada, no livro, como uma das principais responsáveis por nossa crise democrática: o domínio que a informação, como meio de conhecimento e como modo de comunicação, exerce, atualmente, em nossa sociedade e em nossas vidas. Daí o nome do livro, Infocracia, ou seja, uma sociedade na qual se exerce o poder por meio do uso que se faz da informação como meio de dominação. Segundo Han, viveríamos, hoje, em uma sociedade na qual, mesmo sem percebermos, somos controlados e dominados pelo modo com que, a todo instante, somos levados a produzir e a consumir informação, de modo que interfere em nossas capacidades cognitivas e bloqueia, justamente, aquelas faculdades e capacidades que seriam tão indispensáveis para uma sociedade democrática: a capacidade de dialogar, de entender a posição do outro, de imaginar uma maneira de ser e de pensar distinta da sua própria, enfim, todas aquelas capacidades que exigem, de alguma maneira, uma disposição de abertura em relação ao outro.

Mas, talvez pudéssemos no perguntar: afinal, de que maneira a produção e consumo de informação estaria relacionada a isso? Qual seria a relação entre orientar-se unicamente pelo medium da informação e ser incapaz de compreender, dialogar e interagir com o outro? De acordo com Han, uma das principais maneiras com que podemos compreender isso é por meio do regime de atenção que a produção e consumo de informações nos impõe. Informações são imediatamente consumíveis, e requerem apenas uma atenção momentânea. Ora, a partir do momento em que consumimos apenas aquilo que requer atenção imediata e instantânea, deixamos de cultivar outros modos de atenção centrais para o convívio com o outro. Tornamo-nos apenas capazes de prestar atenção e entender aquilo que é imediatamente compreensível para nós e, portanto, apenas aquilo que já está de acordo com nossa própria perspectiva, nossa visão de mundo e, sobretudo, nossa identidade. É por isso que a informação se torna o principal medium de conhecimento e de informação em uma sociedade que já é dedicada, justamente, a formar, nos termos de Han, sujeitos do desempenho, isso é, sujeitos que não se preocupam com nada mais a não ser em afirmar a si mesmos em sua própria capacidade, individualidade e identidade.

Talvez uma das contribuições mais importantes de Han em sua análise da atual conjuntura global da democracia, porém, esteja no modo com que relaciona crise da verdade com crise da comunidade. Apontando acertadamente que Nietzsche nunca propôs o abandono absoluto da ideia da verdade, Han nos lembra que só valoriza a verdade quem compartilha um mundo da vida comum, um solo comum pré-reflexivo que fornece uma base comum a partir do qual o diálogo seria possível. Em nossa sociedade atual, porém, cada vez menos compartilharíamos com o outro um solo comum de vida e de experiência, o que tornaria cada vez mais difícil pessoas com perspectivas diferentes encontrarem uma base comum a partir da qual possam dialogar. Se é assim, talvez um dos principais lembretes que o livro de Han nos deixe, e sobre o qual deveríamos refletir profundamente em vista de nosso contexto atual, tanto global quanto local, seria: a busca pela verdade é inseparável da busca pela comunidade. E, se queremos pensar as bases por meio das quais se poderia superar o império das Fake News a que estamos submetidos hoje (no qual, como Han aponta acertadamente, é a própria ideia de facticidade, de algo que é fato independentemente da minha opinião, que se perde inteiramente), temos de nos perguntar sobre quais bases, éticas e existenciais, seria possível restaurar o desejo e o ideal de uma vida em comunidade e, portanto, de uma vida fundamentalmente aberta ao outro.

 

 


Lucas Machado é professor de história da filosofia pela UFRJ, doutor em filosofia pela USP e atual diretor da Associação Latino-Americana de Filosofia Intercultural (ALAFI). Também traduz, pela Vozes, obras de filosofia alemã para o português, de autores como Markus Gabriel, Byung-Chul Han e Dieter Henrich.