Ética para tempos sombrios
Por: Marconi Pequeno
Em seu livro Ética para tempos sombrios: valores universais para o Século XXI, o filósofo alemão Markus Gabriel apresenta aos leitores os desafios e as encruzilhadas gerados pelos fatos que marcam a nossa contemporaneidade, propondo, para o seu enfrentamento, uma forma de ação baseada em um novo Esclarecimento. Essa consciência esclarecida seria a base de constituição de uma intelecção moral capaz de nos permitir encarar as grandes questões – econômicas, políticas, sociais, culturais, ambientais – do nosso tempo.
Como ponto de partida, o referido autor postula a existência de fatos morais universais e atemporais presentes em todos os contextos societários ao longo da história humana. Tais evidências demonstram que tais fatos podem ser conhecidos e aceitos por todos os seres humanos, independentemente de variáveis contingentes – cultura, gênero, origem, idade, opinião política ou outras características singulares. Esse realismo moral baseia-se na ideia de que existem obviedades morais – a condenação da tortura ou do abuso sexual de crianças, o caráter abjeto da escravidão, a valorização da vida, o repúdio ao racismo como critério de demarcação do humano – que devem ser tomadas como objetivamente existentes, ainda que isso não seja claro para todos os seres humanos.
Assim, ao considerar os fatos morais como verdades que existem objetivamente, o autor se insurge contra as ideias subjetivistas, relativistas, culturalistas e naturalistas presentes na tradição ética ocidental, cujos representantes consideram que a moral seria, respectivamente, produto do interesse de sujeitos atomizados, das expectativas de grupos ou ainda uma decorrência de ordenamentos culturais ou, finalmente, de necessidades naturais. Segundo Markus Gabriel, tais perspectivas se baseiam em compreensões equivocadas de fatos não morais ou se assentam em interpretações errôneas sobre a origem dos juízos, o fundamento das crenças e as motivações que geram as decisões morais que moldam a nossa humanidade.
Esse mesmo equívoco atinge os adeptos do nacionalismo, assim como os defensores do multiculturalismo exiológico, posto que eles se deixam contaminar por uma espécie de niilismo ético e incorrem no mesmo engano factual quando sugerem que aquilo que fazemos em matéria de moral depende de nosso pertencimento a um grupo ou tradição cultural. Com efeito, a identidade universal do ser humano não conspurca tais diferenças, pois estas estão integradas em um todo composto por variações e singularidades. Eis por que, segundo o autor, um esclarecimento global poderia nos livrar das distorções racionalistas baseadas em motivações nacionalistas ou etnocêntricas. Ademais, a moral é algo que surge antes das ideias de maioria e minoria. Por isso, toda compreensão acerca da origem, configuração e expressão da moralidade é sempre parcial e também incapaz de dar conta de todos os elementos que constituem o nosso complexo mundo moral.
Além disso, de acordo com Markus Gabriel, não precisamos recorrer a Deus ou à natureza para justificar a existência de juízos de valor universalmente compartilhados. Eis por que a moral não é uma emanação divina, nem, tampouco, o corolário das forças naturais que nos animam, embora a moralidade também não deva ser vista como uma forma de oposição ao teísmo ou um instrumento de superação da nossa condição animal. A moral é simplesmente uma criação do Espírito humano que não se deixa condicionar causalmente por vontades transcendentes ou inclinações imanentes.
Os tempos sombrios por ele denunciados se fazem representar por um modelo de civilização calcado nas ideias de progresso científico e tecnológico que, segundo o autor, ameaçam a humanidade e o conjunto dos seres vivos. A forma distorcida e deletéria mediante a qual o Projeto da Modernidade tem sido implementado gera um modo de vida predatório, um consumismo insano, a voracidade das cadeias de produção global, o domínio desenfreado das tecnologias de informação sobre o tempo e o espaço humanos, a cobiça cega do lucro que conspurca a dignidade de indivíduos excluídos do mercado e da sociedade de bem-estar, os desequilíbrios ambientais que colocam em risco a própria sobrevivência da nossa espécie, dentre outras anomalias geradas pela razão técnico-instrumental. Eis alguns dos elementos que denunciam o momento obscuro em que nos encontramos.
O combate a essa degenerescência se daria por meio de uma retomada do ideal – notadamente de inspiração kantiana – de uma humanidade reconciliada consigo mesma sob a égide do universalismo, do cosmopolitismo e de uma moral calcada em um novo Esclarecimento. Ao postular a recuperação das forças ativas e emancipadoras da modernidade, Markus Gabriel considera que somente dessa maneira seria possível enfrentar o niilismo pós-moderno, as teorias identitárias sociais de esquerda e de direita, o fundamentalismo ideológico e religioso, a cientificismo cego, a voracidade da economia de mercado na idade do capitalismo avançado, a intolerância étnica ou religiosa, os estereótipos negativos que geram o racismo, a xenofobia, a misoginia, além de outros eventos que, em sua opinião, podem frear o processo civilizatório.
Assim, ao lançar seu olhar sobre as mazelas que determinam o caráter sombrio do nosso tempo, ele elege os inimigos que causam o nosso modelo problemático de civilização: o neoliberalismo, a concorrência brutal, o economicismo como instrumento de progresso material, o avanço colonizador dos aparatos tecnológicos sobre mundo da vida, o aprisionamento dos indivíduos nos espaços virtuais, o cultivo da pós-verdade e das fake news, as guerras cibernéticas e as ditaduras digitais, dentre outros elementos capazes de promover um retrocesso moral da humanidade.
A fim de enfrentar os perigos causadores da nossa real – ou imaginária – decadência enquanto civilização, Markus Gabriel defende a valorização da política da diferença, o fortalecimento de uma economia solidária calcada no ideal de igualdade e justiça distributiva, a defesa dos Estados democráticos e de direito, o resgate da filosofia e da ética na formação dos indivíduos a fim de evitar que as sociedades ditas esclarecidas continuem gerando analfabetos morais, o desenvolvimento de uma intelecção moral global, o cultivo do Espírito e, finalmente, a simbiose entre poder, saber e dever, uma vez que sem progresso moral não pode existir progresso intelectual ou material.
Embora incorra em generalizações sobre a carga deletéria de tais fenômenos e faça considerações apressadas sobre os males que geram o que ele designa de “tempos obscuros” – a exemplo da análise estereotipada, maniqueista e rasteira que ele faz da atual realidade política brasileira – Markus Gabriel considera que, não obstante as reveses acima indicados, é possível constatar em nossa época a existência de um progresso moral representado, sobretudo, pela maneira como a maioria dos governos, Estados e nações enfrentaram a pandemia da Covid-19. Segundo ele, as ações de distanciamento social, as medidas de proteção dos mais vulneráveis, as redes de solidariedade social, o isolamento espontâneo de indivíduos e grupos, as ações dos governantes e até mesmo de empresas em prol da saúde coletiva e da proteção de populações desassistidas, revelam, pelo menos no primeiro momento da crise sanitária, que os valores morais predominaram sobre os interesses econômicos.
Ademais, embora durante a devastadora crise pandêmica tenha ocorrido discriminações, arbitrariedades, surtos nacionalistas, higienismo, interesses egoístas, luta desigual por recursos materiais para o enfrentamento da situação, racismo decorrente da associação de indivíduos e populações a agentes transmissores, o resultado final desse esforço global revelou, é certo, a nossa fragilidade diante da natureza (a contaminação viral), mas, sobretudo, nos trouxe a lição de que nosso destino não está circunscrito às fronteiras de uma nação ou de um grupo, pois devemos reconhecer, com base em um imperativo cosmopolítico, que a humanidade é uma comunidade de destino.
Por fim, em seu livro, Markus Gabriel demonstra que a vida moral é um equilíbrio em movimento, pois ela resulta da realidade ora estável, ora precária, que embala as nossas decisões no plano concreto da nossa existência. A complexidade do mundo moral nos permite reconhecer que os valores são balizas que nos permitem agir de forma correta ou incorreta dependendo das nossa decisões, dos nossos interesses e do exercício da nossa liberdade.
Em face desse laborioso estudo e tenho em vista o rico manancial de questões desafiadoras que o seu autor oferece, esta obra merece ser adquirida e lida não apenas porque destaca as encruzilhadas e os principais problemas a serem enfrentados em nossa época, mas, sobretudo, porque demonstra que nenhuma conquista civilizacional pode prescindir de um esteio moral, pois os valores são os alicerces que definem os juízos, as crenças e as ações do Espírito humano em tempos sombrios.
Marconi Pequeno é Professor Titular de Ética no Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutor em Filosofia pela Universidade de Strasbourg II e Pós-Doutor em Filosofia pelas Universidades de Montréal e Paris X (Nanterre).
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