A fazenda dos animais – George Orwell

“O homem é o único inimigo real”

Por: Leandro Garcia Rodrigues1

Quando George Orwell publicou A fazenda dos animais2, em 1945, a primeira reação da crítica foi de espanto e estranheza; o público leitor logo se identificou. Na verdade, sua intenção era publicá-lo no ano anterior, mas a Segunda Guerra ainda estava acirrada, a tensão bélica prevalecia, e seu romance chegava como uma grande crítica aos regimes fortes e a certas biografias marcadas pelo autoritarismo. Resultado: nenhuma editora teve coragem de editá-lo ainda neste contexto, foi preciso que o conflito mundial terminasse para que este romance fosse publicado e conquistasse o seu merecido sucesso.

Muito já se escreveu e se analisou, do ponto de vista da crítica literária, acerca desta obra de George Orwell. Uma das tantas conclusões me parece óbvia e necessária: ela continua atual e desconcertante, intertextual e polimorfa, enfim, clássica. Todavia, seu classicismo não advém da manutenção de formas e cânones que atravessaram o tempo e a tradição, mas de uma sintomática atualização por tratar de um tema em constante metamorfose existencial: o ser humano e suas limitações, como se percebe denúncia feita pelo narrador:

O homem é a única criatura que consome sem produzir. Ele não dá leite, não deposita ovos, é muito fraco para puxar o arado e é muito lento para pegar os coelhos. Ainda assim, ele é o senhor de todos os animais. Ele os coloca para trabalhar, ele dá a eles apenas o mínimo, de modo a evitar que eles passem fome – o restante, ele mantém para si. Nosso trabalho cultiva o solo, nossas fezes o fertilizam, e ainda assim não há nem sequer um de nós que possua algo além de sua própria pele.

Dentre tantas figuras de linguagem, em A fazenda dos animais, Orwell usou de forma um tanto compulsiva aquela chamada “alegoria”. Esta se caracteriza pela expressão, representação e/ou interpretação de ideias e imagens numa perspectiva figurada e, por isso mesmo, alegórica. É por isso que os personagens animais podem ser interpretados em diferentes perspectivas: metáforas dos seres humanos, alter egos do próprio autor ou reflexo do leitor. Diante disso que a personalidade de cada animal nos soa tão familiar e parte da nossa vida: porcos, velhas, cavalos, vacas, galinhas, o burro etc. possuem um pouco de cada um de nós mesmos. Desta forma, todos apresentam traços marcantes – e até sombrios – de manipulação, alienação, rigidez, resiliência, ignorância, teimosia e uma infinidade de outros sentimentos e estados que configuram a complexa realidade humana.

Por esta razão que a maioria dos críticos, e também muitos leitores, associam o enredo de A fazenda dos animais ao contexto da Revolução Russa e todas as suas conquistas e idiossincrasias. Assim, teríamos o seguinte quadro de possíveis associações: Major (Marx e/ou Lenin); Napoleão (Stalin); Bola de Neve (Trotsky); as ovelhas que repetem sem consciência os lemas (a massa alienada); os cavalos com seus tapa-olhos que só conseguem olhar para o trabalho (o trabalhador massacrado); as galinhas que se perdem na dispersão (o povo sem rumo na vida); o burro empacado em suas verdades (visão reduzida de mundo); os cães fiéis à guarda de seus donos (a fidelidade cega de alguns)… Ou seja: todos um tanto escravos da própria “revolução”, vítimas de seus sonhos, reféns de esperanças vãs e prisioneiros dos sonhos sem rumo e inatingíveis.

Neste romance, é interessante perceber que a simbiose entre bichos e pessoas é tão verossímil que, não raro, temos dificuldade de perceber quem é quem. Percebam o destaque que é dado aos aspectos da crueldade inerente à condição de certos seres vivos, especialmente quando a prática do poder e da manipulação dão o tom:

Qualquer um que ande com duas pernas é um inimigo. O que quer que tenha quatro patas ou asas é um amigo. E lembre-se também que, ao lutar com o Homem, não devemos nos assemelhar a ele. Mesmo quando o tiverem conquistado, não adotem seus vícios. Nenhum animal deve nunca viver em uma casa, ou dormir em uma casa, ou vestir roupas, ou beber álcool, ou fumar tabaco, ou tocar no dinheiro, ou engajar-se no comércio. Todos os hábitos do Homem são maus.

Quem, na verdade, é mau?

Tal pergunta se faz necessária para a chave de interpretação de A fazenda dos animais, pois um dos objetivos de George Orwell foi justamente este: relativizar as fronteiras rígidas do humano e do animalesco, mostrando que ambos se interligam e podem se comunicar. Na verdade, a estratégia não é encontrar uma resposta definitiva e engessada à pergunta acima, mas problematizar e (re)pensar a nossa difícil e escassa existência pessoal. E o radicalismo vai mais além, levando o personagem Bola de Neve a vociferar que os mandamentos acima “poderiam ser reduzidos efetivamente em uma única máxima: ‘Quatro patas, bom, duas patas, ruim’. Essa máxima, disse ele, continha o princípio essencial do Animalismo”.

Perguntas que brotam de uma leitura atenta desta obra: quem é o tirano? Como ele pode ser construído? Qual a fronteira entre agressor e agredido? Qual a distância entre a vítima e o algoz?

Com origem na literatura clássica greco-latina, a “sátira” é uma estratégia artística (particularmente na literatura e no teatro) que visa ridicularizar um determinado tema (indivíduos, instituições, estados etc.) como forma de intervenção especulativa e até política, com o objetivo claro de provocar um questionamento e propor uma reflexão crítica. A revolução não é apenas dos bichos, já que neste enredo “Houve muita discussão sobre como a batalha deveria ser chamada. No final, ela foi chamada de Batalha do Abrigo das Vacas, posto que foi ali que a armadilha tinha sido preparada”. A revolução é de todos nós, é mais interna do que externa, é inicialmente ontológica, mas com um reflexo claro no social, no coletivo, na sociedade.

Ou seja, nesta fábula entremeada a muita distopia, a firmação de que “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros” resume bem a forte crítica que George Orwell quer provocar, tirando o leitor da sua zona de conforto, obrigando este a (re) avaliar o mundo, as suas opções e a sua própria vida.

Creio que A fazenda dos animais tem muito a interpelar o leitor independente de quando será lido, não apenas pela sua atualidade já referida, mas especialmente por vivermos num momento histórico e político extremamente delicado e fragmentado. Contextos assim possibilitam a emergência de discursos e narrativas que emergem da violência – prática, linguística, ideológica – e que podem despertar o que há de pior na condição humana. Isto é, a vítima de hoje poderá se tornar o facínora de amanhã. Desta forma, podemos ser Bola de Neve, o Major, Napoleão, Benjamim, o Sr. Jones, as ovelhas… podemos ser nós mesmos.

Dialogando com outras artes

Um dos romances mais lidos e ressignificados da literatura inglesa contemporânea, A fazenda dos animais é considerada uma das 100 mais importantes criações literárias que a língua de Shakespeare produziu, no século XX. Por isso mesmo tem provocado um interessante diálogo com outras expressões artísticas, o que lhe fornece uma constante e saudável intertextualidade, ainda que não mantenha o título original. Destaco:

I – Música

a) Animals (1977): álbum do grupo Pink Floyd. “Disturbance at the Heron House” (1987): canção do grupo R.E.M., gravada às vésperas do anúncio de que o conservador George H. W. Bush concorreria à Presidência dos Estados Unidos.

b) English Civil War (1979): do grupo The Clash, disco e imagem da capa inspirados totalmente por A fazenda dos animais.

c) “Optimistic” (2000): canção do grupo Radiohead, na qual o romance de Orwell é citado literalmente.

II – Cinema

a) A revolução dos bichos (2019): filme/animação produzido e dirigido por Andy Serkis para a Netflix.

b) A fuga das galinhas (2000): animação, produzido em conjunto pela Aardman Animations e pela Dream-Works Animation. Teve a direção de Peter Lord e Nick Park a partir de um roteiro de Karey Kirkpatrick, inspirado em A fazenda dos animais.

c) A trilogia Planeta dos Macacos: a origem (2011), Planeta dos Macacos: o confronto (2014) e Planeta dos Macacos: a guerra (2017). Todos foram dirigidos por Rupert Wyatt e produzidos pela 20th Century Studios; com uma forte intertextualidade entre os romances Le planète des singes (romance francês de Pierre Boulle, publicado em 1963, que faz uma contundente crítica social por meio de distopias) e A fazenda dos animais, de George Orwell.

d) Animal Farm (1999): filme/animação dirigido por John Stephenson e escrito por Alan Janes, produziu uma visão mais romanceada e subjetiva em relação ao romance de George Orwell, numa perspectiva mais infantil.

III – Youtube

a) A revolução dos bichos (1954): animação; primeira adaptação/releitura feita acerca do romance de Orwell. Dirigido por John Halas e Joy Batchelor. Houve uma clara opção por fazer dos animais apenas vítimas do ser humano.


1. Leandro Garcia Rodrigues é doutor e pós-doutor em Estudos Literários pela PUC-Rio e pós-doutor em Teologia pela FAJE-BH. Também é crítico literário e especialista em Epistolografia – estudos críticos sobre cartas e correspondência entre escritores.

2. No Brasil, o título mais comum é A revolução dos bichos. Em Portugal, é possível encontrar edições com diferentes traduções para o título: O porco triunfante, O triunfo dos porcos e A quinta dos animais.

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