O novo rosto do catolicismo brasileiro
Por: Agenor Brighenti
Este é um segundo livro que apresenta mais uma parte dos resultados de uma pesquisa de campo, levada a cabo em todo o território nacional, em busca do perfil dos “padres novos” no seio do catolicismo brasileiro e do mundo de hoje. O primeiro livro – O novo rosto do clero – Perfil dos padres novos no Brasil – também publicado por esta editora, apresenta dados das amostras de duas perspectivas sócio-pastorais, às quais se alinham as categorias de agentes eclesiais consultados – a perspectiva institucional/carismática e a perspectiva evangelização/libertação.
Já esta nova obra apresenta e analisa dados de cada uma das categorias de agentes eclesiais consultados entre o clero e o laicato – padres, leigos/as, jovens, seminaristas e religiosas – por perspectiva sócio-pastoral em separado, com foco nos dados relativos aos “padres novos”, com o objetivo de caracterizar seu perfil no seio do catolicismo brasileiro.
Dados levantados constatam a existência de duas perspectivas sócio-pastorais no catolicismo brasileiro. A primeira, em sintonia com a recepção criativa do Vaticano II na América Latina – a perspectiva evangelização/libertação – que no imediato pós-concilio compunha a maioria dos católicos, mas que com o processo de involução eclesial instaurado nas três décadas que precederam o atual pontificado, minguou muito. A segunda, atrelada a modelos de Igreja pré-conciliares e a uma religiosidade de corte pentecostal e secularista – a perspectiva institucional/carismática – que em contrapartida ganhou visibilidade e espaço, tanto que se pode dizer que houve certa “carismatização” da Igreja no Brasil, assim como o recrudescimento de tradicionalismos e entrincheiramentos identitários, típicos da neocristandade.
Ultimamente, com o resgate da renovação conciliar por Aparecida e o Papa Francisco, a chama voltou a arder, mas muito tímida, pois são muitas as adversidades. Por um lado, se tem consciência que as intuições básicas e eixos fundamentais do Vaticano II e da tradição libertadora continuam válidos, mas, por outro, se sabe que o contexto mudou, com a emergência de novos desafios e novos valores. Sente-se que houve uma “primeira recepção” do Vaticano II no contexto da modernidade, mas que, hoje, apresenta-se o grande desafio de uma “segunda recepção” no novo contexto, sem renunciar as conquistas ou os passos dados durante a “primeira recepção”. O mesmo vale para a “recepção criativa” do Vaticano II, feita em torno a Medellín e Puebla, principalmente. Sem renunciar opção pelos pobres, Igreja em pequenas comunidades inseridas profeticamente na sociedade, evangelização integral e libertadora, profetismo, pastoral social, etc., é preciso ir além, buscando dar novas respostas às novas perguntas, bem como criando novas mediações para aterrissar os mesmos ideais no novo contexto.
Sem dúvidas, depois décadas muito difíceis e sem perspectiva de futuro, vivemos um momento eclesial novo e promissor. O Sínodo da Amazônia, a Primeira Assembleia Eclesial e o Sínodo sobre a sinodalidade convergem nesta perspectiva. Entretanto, como em grande medida a renovação do Vaticano II é ainda uma tarefa pendente, as dificuldades para avançar não são poucas. Implica a superação de três décadas de involução eclesial em relação à renovação do Vaticano II, processo ainda não estancado. O próprio Papa Francisco encontra resistências às suas iniciativas, inclusive mais dentro da Igreja do que fora dela, mais na Cúria romana do que nas Igrejas Locais.
A resistência maior vem do medo de vários segmentos da Igreja de inserir-se no mundo em atitude de diálogo e serviço. Daí o escapismo do emocionalismo ou a busca de segurança em um passado sem retorno, em fundamentalismos, tradicionalismos e devocionismos, em uma postura apologética frente ao mundo. Isso tem redundado na retração das formas de presença e de atuação da Igreja na sociedade, no encolhimento da pastoral social, assim como no refúgio em uma Igreja autorreferencial, centrada no padre e na paróquia. Com esta postura, a opção pelos pobres deriva a assistencialismos, fazendo dos excluídos objetos de caridade e não sujeitos de uma sociedade inclusiva de todos. Tal como denunciou Aparecida, na atualidade, há a volta de espiritualidades e eclesiologias pré-conciliares, acompanhadas do clericalismo(DAp 100b), fenômeno ao qual o Papa Francisco tem se oposto duramente, propondo bispos e padres no meio do povo, com “cheiro de ovelha”, presentes nas periferias.
O estancamento do processo de involução eclesial implica, em última instância, a superação de uma “Igreja autorreferencial”. A “nova evangelização”, uma categoria de Medellín para dizer da necessidade de mudanças no agir da Igreja para levar adiante e renovação do Vaticano II, durante as décadas de involução eclesial que se instaurou na Igreja, passou a caracterizar uma missão nos moldes da neocristandade – sair para fora, para trazer de volta para dentro da Igreja os que se distanciaram dela. Entretanto, em lugar de uma missão centrípeta, Aparecida propõe uma missão centrífuga – uma Igreja missionária, descentrada de si mesma, em saída para as periferias; uma missão que tem como centro a periferia – as periferias geográficas e existenciais; uma Igreja presente nas fronteiras, mas sem a tentação de domesticá-las, rompendo com mentalidades e posturas colonizadoras; uma Igreja na qual todo batizado é “discípulo missionário”, na continuidade da missão do Mestre; “discípulos missionários”, membros de “comunidades eclesiais em estado permanente de missão” (DAp 226); uma missão que tem como meta tornar presente o “Reino de Vida” no mundo (EG 176).
Em resumo, o estancamento do processo de involução eclesial, ainda em curso, implica o exercício do sensus fidelium, uma Igreja sinodal fundada em “uma cultura eclesial marcadamente laical” (QAm 94). É o melhor antídoto ao clericalismo, seja de clérigos, seja de leigos clericalizados, uma marca da perspectiva sociopastoral “instituição/carismática”, à qual estão alinhados os “padres novos”. Mas, também não se pode descuidar das mudanças necessárias no campo da formação presbiteral, começando pelos critérios de recrutamento dos candidatos, passando pelo perfil dos seminários e o teor dos conteúdos da formação humana, espiritual, intelectual e pastoral. No Sínodo da Amazônia, a formação presbiteral e os seminários foram uma especial preocupação, sobretudo expressada pelo Papa Francisco. Carecem de maior proximidade e convergência com a renovação conciliar e o magistério latino-americano e do Papa Francisco. E por que não seminários situados nos meios populares e os seminaristas engajados em processos pastorais nestes espaços? Teríamos, quem sabe, outro perfil de “padres novos”, atores imprescindíveis para reimpulsionar a renovação do Vaticano II e a tradição eclesial libertadora no novo contexto, a marca de nossos mártires latino-americanos, os novos santos das causas sociais.
Agenor Brighenti é presbítero da Diocese de Tubarão,SC, doutor em Teologia na Universidade Católica de Lovaina/Bélgica. Foi professor-pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Foi perito do Celam na Conferência de Santo Domingo (1992), da CNBB em Aparecida (2007) e do Sínodo da Amazônia em Roma (2019). É membro da Equipe de Reflexão Teológico-Pastoral do Celam, da Comissão Teológica do Sínodo dos Bispos (2021-2023) e professor do Centro Bíblico-Teológico-Pastoral para a América Latina do Celam em Bogotá. Autor de duas dezenas de livros e de duas centenas de artigos publicados em revistas nacionais e internacionais.
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