O homem que foi três vezes Papa
Por: Leandro Duarte Rust
Esta é a história de um homem que jaz oculto à vista de todos. Sua identidade nunca foi um mistério. Sua façanha sempre figurou no registro histórico. No entanto, sabemos pouquíssimo sobre as três vezes em que Bento IX se apoderou do papado. Como tudo transcorreu? Que causas foram determinantes? Como os contemporâneos reagiram? O que tais desfechos revelam sobre a cultura ou a política da época? Quais as repercussões sobre a Igreja e o Cristianismo? As perguntas se multiplicam; se alastram muito além do que os olhos de nossa razão podem encontrar, pois os mantemos fixados em uma mesma resposta: tudo se passou em uma sociedade naturalmente corrupta.
Ao invés de esclarecer, a ideia de corrupção tem funcionado como venda espessa, obstruindo a visão. Isso não ocorre por descuido. Há razões para isso. Em primeiro lugar, era assim que homens e mulheres do século XI pensavam. Imersos numa visão de mundo cristã, viviam as relações de poder como a consequência de méritos ou falhas individuais. No caso de Bento IX, tudo era narrado como efeito de seus pecados. Isso bastava para dar sentido. Por isso – eis uma segunda razão – as menções a ele eram tão sucintas, lacônicas. Há uma sufocante escassez documental, pois tudo o que precisava ser dito estava contido em acusações genéricas, como a de que se tratava de um homem venal, adúltero, que agia com rapinas, massacres. Por fim, essas descrições alimentam outro estereótipo: o da Idade Média como período histórico desprovido de qualquer noção de bem comum ou de poder público. Cada capítulo de O homem que foi três vezes Papa contém esforços para superar esses limites e alargar o campo de nossa compreensão histórica.
A busca tem início com o episódio que interrompeu o papado de Bento IX. Após governar a igreja de Roma por doze anos, o pontífice é expulso da cidade por uma revolta popular. A leitura predominante entre historiadores e historiadoras é a de que se tratou de uma insurreição espontânea, provocada por algum excesso papal, como se o abuso moral tivesse feito romper o dique dos escândalos tolerados pela população. A indignação jorrou na força de um levante do rebanho contra seu próprio pastor. O homem que foi três vezes Papa formula uma hipótese de trabalho diversa. A de que a revolta teria sido parte de um movimento mais politizado do que costumamos reconhecer. A insatisfação contra Bento surge como o posicionamento coletivo de parte da população romana visando a proteção de interesses próprios, a respeito dos quais se nutria apurada consciência comum. A reação à imoralidade do papa encobria a defesa de uma política local.
Em seguida, o livro se detém sobre o episódio de maior destaque entre os cronistas medievais tanto quanto entre historiadoras e historiadores modernos. Trata-se da chamada “venda do papado”. Eis as linhas gerais do ocorrido. Poucos meses após a revolta popular, Bento reassumiu o poder graças ao suporte militar dos parentes. Porém, o retorno não foi duradouro. Em questão de semanas, decidiu renunciar. O fez aconselhado pelo padrinho, que também era clérigo. Mas sob uma condição: que recebesse um montante de dinheiro. Bento dispôs do papado mediante uma barganha mundana. Sem contestar tal conclusão, o livro volta nossas atenções para a constatação crucial: alguns cronistas conferiram maior relevância ao dinheiro que outros. Não se tratava de leitura unânime. Em outras palavras, o dinheiro movimentado pelo papa parece conter algum significado especial para certos narradores. A conclusão abre caminho para explorar como a renúncia papal proporcionou terreno para um engajamento ideológico sutil, mas decisivo para as posições de poder dos próprios contemporâneos.
Falar sobre a corrupção não era estabelecer um registro desinteressado sobre o que passou. O caso de Bento IX decorria de uma comprovação factual e era, simultaneamente, uma arena discursiva onde se disputava o poder de manipular politicamente as audiências medievais. Com isso, vem à luz duas implicações de primeira ordem. Um, os medievais possuíam consciências apuradas a respeito da corrupção. Narrava-se a trajetória de Bento, suas idas e vindas sobre o trono de São Pedro, para dirigir o senso de repúdio e indignação que os narradores presumiam encontrar em seus ouvintes e leitores. O século XI ilustra a complexidade e a diversidade das percepções da corrupção durante a Idade Média Latina. Dois, tais percepções não eram fatos exclusivamente jurídicos. Na realidade, para que a reputação de corrupto emergisse plenamente era preciso que o denunciante ocupasse uma expressiva posição de poder e fizesse da denúncia um artefato politicamente útil e versátil. Tais temas ocupam os dois últimos capítulos da obra.
O Homem que foi três vezes Papa não é um livro revisionista. Nele são se trata de redimir Bento IX da imagem de corrupto. Aliás, cabe dizer que suas páginas enfatizam não apenas o fundamento social da corrupção praticada pelo pontífice, mas igualmente a força das reações que passaram à posteridade. Trata-se de um livro dedicado a demonstrar como a corrupção é fenômeno complexo, que exige a superação de explicações simplistas e automáticas. Um livro empenhado em redescobrir o já conhecido.
Leandro Duarte Rust, nascido em 1981, é historiador e professor na Universidade de Brasília.
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