Corpo e discurso – Uma história de práticas de linguagem
Por: João Kogawa
O novo livro de Jean-Jacques Courtine, apresentado e traduzido pelo Prof. Carlos Piovezani (tradutor e parceiro do Prof. Courtine em inúmeros trabalhos), é, nas palavras do próprio autor, a “crônica de uma disciplina” e a “história de um relativo afastamento”. Por mais que, em uma leitura imediata, possamos interpretar a proposta como uma história da Análise do Discurso, um olhar atento aos índices – algo a que Courtine nos convida desde a História do Rosto, passando por História do Corpo, História da Virilidade e História das Emoções – desnudará os elementos de uma crítica do presente.
O primeiro capítulo, intitulado “Uma genealogia da Análise do Discurso”, é uma avaliação crítica do contexto de emergência dessa disciplina de interpretação. Chamam a atenção os componentes idealistas que fomentaram essa prática teórica: “Querer analisar discursos era (…) ocupar uma posição heroica numa luta teórica e política (COURTINE, 2023, p. 35). Essa “posição heroica” confundia-se, em certa medida, com uma posição política de esquerda em que o analista se propunha como tarefa “[…] constituir uma crítica de esquerda às práticas e discursos do Partido Comunista Francês” (COURTINE, 2023, p. 54). Isto é, a AD funcionava como um dispositivo de autocrítica no interior do discurso comunista em um momento – pós-68 – em que era assinado o Programa Comum de União da Esquerda.
Resulta disso que as coisas iam bem enquanto pairava certa convergência entre a ala crítica e as diretrizes e crenças do partido… Não se pode confinar o andarilho… Courtine não permaneceria muito tempo nessa posição. Já em sua tese, defendida em março de 1980, o pensador sempre ousou quebrar os espelhos ao invés de se pentear na frente deles. O que viria depois de Análise do Discurso Político: o discurso comunista endereçado aos cristãos já estava anunciado na Langages n. 62.
Ao adotar a arqueologia foucaultiana como norte, Courtine reveria as linhas diretivas da “posição heroica” até então ocupada. É clássica a afirmação de Foucault que confronta “os propósitos do professor republicano e do operário militante” de “esclarecer o povo, de lhe ensinar a ler a sua própria opressão”: “O intelectual não tem mais que desempenhar o papel daquele que dá conselhos (…). O que o intelectual pode fazer é fornecer os instrumentos de análise […]” (FOUCAULT, 2001, p. 151).
Dada a inconciliabilidade entre o andarilho e o Partido, o capítulo 2 (“Desconstrução de uma língua de madeira”) descreve certas formas de totalitarismo das quais o comunismo não deixava de fazer parte. O exemplo extraído da obra de Milan Kundera (Livro do riso e do esquecimento) – não o descreverei para não dar spoiler – demonstra o quanto: “[…] podemos estender as observações que fizemos sobre o estatuto da memória no discurso comunista. Uma de suas características essenciais é a reescrita da história e sua relação com as linguagens totalitárias (COURTINE, 2023, p. 80).
Nesse sentido, a marcha histórica apresentava uma realidade dinâmica a que as narrativas tradicionais do Partido Comunista não respondiam mais: “[…] a análise do discurso comunista francês deve considerar este fato novo: trata-se de um discurso que não cativa mais” (COURTINE, 2023, p. 89). O efeito maio de 68 “[…] fez do discurso comunista um bastião ultrapassado da pedagogia diretiva” (COURTINE, 2023, p. 95). A perda da força doutrinal do Partido, correlata da reorganização social da classe operária em função do cenário econômico mundial, impõe uma dura realidade à utopia do bem comum: “A classe trabalhadora à qual se refere o discurso do Partido e da qual ele deseja ser o porta-voz já não mais existia” (COURTINE, 2023, p. 97).
Após a apresentação das causas de seu relativo afastamento do projeto inicial da AD, Courtine descreve, nos capítulos 3 (“O espetáculo político das massas”) e 4 (“Corpo e Discurso”) os caminhos para uma Semiologia Histórica, já apresentados pelo autor em Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Após os anos 1980, cada vez mais, o liberalismo tomou conta da paisagem mundial, tanto no plano político quanto, fundamentalmente, no econômico. A crítica a modelos econômicos planificados, ao dirigismo de Estado e a reinvindicação à liberdade individual comporão a ordem mundial. Não sem razão, em seus últimos escritos, notadamente, em O nascimento da biopolítica, Foucault investiga o funcionamento desse modelo à luz de autores liberais como Hayek, Milton Friedman entre outros.
Longe de “ideais coletivos e transcendentes”, as pessoas hoje querem correr atrás de seus interesses – ou daquilo que julgam sê-lo. Não se trata, para o analista da linguagem, de “lamentar” ou de “se escandalizar” com isso, mas de ser capaz de fazer esse diagnóstico à luz das materialidades que se apresentam, ou seja, à luz da conexão inescapável entre linguagem e corpo: “A dissolução da multidão política é contemporânea das tecnologias de comunicação de massa” (COURTINE, 2023, p. 114). A lógica de mercado insere o político hoje muito mais na ordem do marketing do que na do palanque. O efeito dessa superprodução midiática é uma simplificação cada vez maior da linguagem – em oposição aos longos discursos da época dos grandes pronunciamentos –, que precisa estar adequada ao cidadão comum, que acorda cedo todos os dias e enfrenta o trânsito em coletivos para ir ao trabalho com o seus smartphones brilhando na paisagem urbana ao deslizar dos dedos pelas últimas polêmicas. O político é um corpo na tela: “[…] passamos de uma análise linguística do discurso para um trabalho histórico sobre a articulação entre o discurso e o corpo em práticas de linguagem (COURTINE, 2023, p. 137).
As reflexões trazidas em Corpo e discurso: uma história de práticas de linguagem chegam em boa hora. A política não pode mais ser pensada fora da lógica das redes e do capitalismo de vigilância. Se Courtine aponta o jogo complexo entre corpo e linguagem na constituição do discurso político moderno, isso deve se articular ainda com o funcionamento do engajamento político individual nas redes como mercadoria para o capital das grandes empresas garimpeiras de dados. Já não vivemos mais a Era do discurso televisivo articulada ao capitalismo industrial; vivemos a Era das redes e do capitalismo de vigilância (ZUBOFF, 2020). Se, até o início do século XX, nossa existência era dada visualmente como um “eu-para-o-outro”, de lá para cá, à luz das câmeras frontais dos smartphones, vivemos um “eu-para-mim para-o-outro”. O exterior foi incorporado ao interior como destinatário imperativo e regulador a juízo de quem esvaziamos nossa existência interior. Ser “instagramável” é a ordem do dia na relação entre sujeito, corpo e linguagem.
Ao percorrer as páginas brilhantemente redigidas por Courtine e traduzidas pelo Prof. Carlos Piovezani e sua equipe, o leitor de Corpo e discurso: uma história de práticas de linguagem terá uma rara oportunidade de refletir sobre a coragem de, parafraseando Foucault, não permanecer o mesmo.
João Kogawa é Professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo. Coordenador do Podiscurso: o podcast da Análise do Discurso.
Bibliografia
COURTINE, Jean-Jacques. Corpo e discurso: uma história de práticas de linguagem. Apresentação e coordenação da tradução de Carlos Piovezani. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
FOUCAULT, Michel. Poder-Corpo. In: _. Microfísica do poder. 16. ed. Organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2001. pp. 145-152.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Compartilhe nas redes sociais!
Comentários
Seja você a fazer o primeiro comentário!