O comunismo como problema
Por: André Magnelli
Em A atualidade do Manifesto Comunista, Slavoj Žižek propõe respostas a uma questão bem comum para professores, estudantes e pesquisadores. Ela vem logo à mente quando lemos as páginas do Manifesto de Marx e Engels: será que este texto, que em 1848 anunciava o fim do capitalismo e conclamava a união revolucionária do proletariado, possui alguma atualidade hoje?
O livro de Žižek é um ensaio composto por cinco capítulos. Ele não pretende realizar uma exegese, nem também é uma introdução às teses do Manifesto. Tendo sido escrito em 2018, nos 170 anos da publicação, trata-se de uma inteligente reflexão sobre sua “atualidade tardia”.[1] Como herdeiro da tradição marxista, Žižek realiza a costumeira crítica radical do capitalismo, declarando que seu fim está próximo e que o comunismo permanece no horizonte; mas, sendo um pensador independente, ele constata também o fracasso histórico do comunismo e a ausência de qualquer base social para uma revolução. É assim que, para ele, o comunismo só permaneceria possível como um problema, e não uma solução. O comunismo seria uma incógnita das crises de nosso tempo. Um x das questões.
O capitalismo terá, enfim, um fim?
Žižek orienta sua reflexão a partir do ensinamento de Marx: o que importa é analisar as tendências de desenvolvimento do capitalismo, a fim de compreender, na teoria, o movimento histórico em seu conjunto. Articulando o Manifesto Comunista com o conjunto da obra de Marx, ele lança mão de conceitos clássicos – como os de valor e valor-trabalho, de valorização (Verwertung), de fetichismo da mercadoria, de intelecto geral e de capital fictício –, utilizando-os em diálogo com analistas como Wolfgang Streeck, Jeremy Rifkin, Rebecca Carson, David Harvey, Toni Negri, Carlo Vercellone, entre outros.
O capitalismo estaria, para ele, chegando ao fim, o que seria reconhecido, inclusive, pelos próprios capitalistas, que propõem suas formas de remediá-lo. Algumas tendências reais estariam criando o horizonte de uma sociedade pós-capitalista. Assim, os sistemas em redes físico-digitais inteligentes proporcionariam as condições materiais para a superação de uma economia baseada na propriedade privada rumo a uma economia dos bens comuns. Na esteira de outros, Žižek atualiza a análise do capitalismo a partir do conceito de “intelecto geral” elaborado por Marx nos Grundrisse. Esse conceito serve para contornar os limites de uma teoria do valor e da acumulação centrada no trabalho fabril, permitindo identificar a lógica de cognitivização do capitalismo. Apesar da tendência atual ao pós-capitalismo, ele identifica que as grandes corporações de tecnologia da informação operam uma privatização dos bens comuns, uma vez que a acumulação capitalista passa a ser pela incorporação privada do intelecto geral sob controle corporativo.
Trata-se aqui, para ele, de uma mudança tanto nas formas de exploração quanto nas de controle. Do ponto da exploração, a forma tendencial deixa de operar pela exploração direta da mais-valia do trabalhador, passando a ser via apropriação rentista do intelecto geral (p. 17). Do ponto de vista do controle, a exploração não se dá pela mediação direta do capital privado organizado, mas sim por uma participação “livre” de cada qual na ampliação do intelecto geral. No campo da experiência cotidiana, isso aparece como “escolha livre imposta”[2], cuja imposição é garantida pelo Estado, caso necessário. Estaria aí a provável contradição fundamental: o capitalismo é, ao mesmo tempo, cognitivo e extrativista, desregulador e intervencionista, nômade e hiperestatal, hedonista e controlador (p. 16-7).
Quais espectros que nos rondam?
Quando olhamos para as seções I e II do Manifesto, encontramos as passagens que sempre impressionam meus alunos quando os faço superar a preguiça de ler. É o caso daquele parágrafo que declara que “tudo que é sagrado é profanado” e que os sentimentos nobres de outrora são “afogados nas águas turvas do cálculo frio e egoísta”. Apesar disso pressagiar o utilitarismo radicalizado de hoje, Žižek mostra os limites da visão de que teríamos um materialismo terra-a-terra e desencantado. Juntamente com a mercantilização, Marx identifica em sua obra tardia, com o conceito de fetichismo, como o capitalismo produz espectros.
Deste modo, passamos da questão do “espectro do comunismo” para outra: a do caráter espectral das relações capitalistas. A sociedade mediada pelo capital altamente abstrato é a mesma que radicaliza a fetichização do dinheiro e das relações sociais. Ao mesmo tempo que a acumulação de valor é cada vez mais fictícia, esfuma-se a materialidade do dinheiro, que se torna um cálculo de bits digitais realizado em um espaço virtual de créditos e débitos. Com isso, a realidade material é espectralizada em fluxos de informações, o que repercute, metafisicamente, na concepção que os sujeitos têm de si mesmos. Os sujeitos são dissolvidos, juntamente com os objetos, em experiências fluidas, com um “eu proteico” vivendo em meio a simulacros, de forma que “as únicas coisas estáveis são obrigações simbólicas virtuais” entre credores e devedores (p. 54). Esta questão se torna bem clara, diga-se de passagem, quando vemos o Facebook apostar no mundo espectral do Metaverso como vanguarda tecnológica de seu business voltado à transformação dos desejos e relações sociais de usuários em meios de captura e acumulação de valor.
O que resta do comunismo?
Uma questão básica, que atravessa o livro, é uma constatação longe de ser nova: não existe qualquer possibilidade hoje de uma agência unificada que desencadeasse uma revolução. Este ponto dialoga com outra constatação, a do esgotamento dos horizontes utópicos.
No último capítulo, Žižek critica a teoria da revolução do Manifesto à luz das experiências revolucionárias. Os comunistas eram minorias vanguardistas e oportunistas, “não dogmáticas”, porque sempre dispostas a abrir mão do comunismo em favor da manutenção do processo revolucionário. “Os comunistas no poder têm duas soluções (ou, em vez disso, dois lados de uma mesma solução): o partido reina sobre a população passiva e falsifica a mobilização popular” (p. 76). Logo, o fracasso histórico do comunismo é reconhecido como uma evidência.
Contudo, ele parece oscilar diante de sua esperança revolucionária. De um lado, ele tem a tendência inerente ao marxismo desencantado, que consiste em afirmar uma totalidade dominadora contra a qual não se tem como lutar – a não ser que surja um “messias revolucionário” que agarre a oportunidade histórica pelos cabelos. É neste sentido que ele diz que o fim do capitalismo se dará através de um “lento declínio e desintegração”, e que “a realidade [expressa no Manifesto] alcançou sua noção” de forma inesperada, porque o triunfo da teoria do capitalismo é a derrota da promessa comunista. Mas, de outro lado, ele entende que deve ocorrer uma transformação da própria ideia de comunismo, que se tornou agora um problema:
[…] a solução clássica marxista falhou, mas o problema permanece. O comunismo hoje não é o nome de uma solução, mas o nome de um problema, o problema dos bens comuns em todas as suas dimensões: os bens comuns da natureza como a substância de nossa vida; o problema de nossos bens comuns biogenéticos; o problema de nossos bens comuns culturais (“propriedade intelectual”); por último, mas não menos importante, os bens comuns como o espaço universal da humanidade a partir do qual ninguém deve ser excluído. Seja qual for a solução, ela terá que lidar com esses problemas (p. 81-2).
Certamente, essa passagem é o ponto forte do livro. Ela demonstra uma abertura cognitiva para a multiplicidade de ações jurídicas, políticas, culturais e associativas vinculadas aos bens relacionais e comuns. Isso leva ao abandono das ilusões de um socialismo “científico” e “real”, que considerou como utopias infantis as práticas associativas, cooperativas e pluralistas. Lembremos, contudo, que a experiência histórica comunista não se confunde com o comum; ao contrário, quando tornado realidade, o comunismo atuou para aniquilar o comum. Ao invés de considerar isso uma contingência histórica, devemos ver este problema germinando das pretensões de “história natural” presentes no Manifesto. É o que diz, com força, Claude Lefort: “a história da humanidade [feita no Manifesto], que se desvela diante do olhar dos comunistas, desemboca em uma sociedade sem ideias, uma sociedade que coincide consigo mesma a ponto de anular, em seu seio, toda possibilidade de julgamento [, conflito e pluralidade]. […] Ela exclui toda representação de si mesma; não seria possível dizê-la, ela não saberia se nomear, livre e justa. Ora, este paradoxo denuncia a fantasmagoria do Manifesto […]”.[3]
Isso nos conduz a um ponto em que Žižek se impediu de levar: se o capitalismo cria seus espectros fetichistas, o Manifesto projetou sua fantasmagoria trágica. Portanto, o passo dado por Žižek, aproximando o “comunismo” do “comum”, precisaria de mais mediações para se mostrar factível, o que poderia ser feito reconhecendo que está esgotada a ideia de comunismo presente neste pequeno Bildungsroman [romance de formação] chamado Manifesto Comunista, que deve ser descartada a favor, talvez, de outras facetas de Marx, como aquelas presente no expressivismo humanista do Manuscritos econômico-filosóficos ou na visão mais cooperativista da Crítica do programa de Gotha.
Considero uma forte aquisição teórica a reflexão crítica de Žižek sobre o comunismo enquanto um problema, sobretudo porque se esforça por interpretá-lo à luz do capitalismo contemporâneo, sem distorcê-lo por uma visão no retrovisor do século XIX. Todavia, ele continua preso a algumas amarras de sua tradição, enfeitiçado pelo poder mágico que os giros dialéticos têm em minimizar os fundamentos normativos da democracia e dos direitos humanos. Falta a Žižek uma teoria substantiva da democracia que dê sustentação para seu horizonte emancipatório. Isso ocorre porque ele continua a reproduzir dois erros comuns da tradição revolucionária: relativiza o fundamento liberal da democracia, pois o vê como pura e simples “ideologia burguesa”; e não elabora uma apreensão histórico-sistemática da experiência democrática. Portanto, ele não deixa de esperar a “oportunidade” para o salto disruptivo rumo à promessa comunista inscrita no presente; e com isso, zomba ironicamente dos “pudores” de “liberais” e “humanistas” defensores dos direitos humanos e valores universais.
E assim, mesmo que o comunismo tenha se tornado um problema inacabado, o ethos do revolucionário profético não deixa de ser um hábito incrustado cheio de certezas. À luz da informulável “verdadeira emancipação” porvir com a superação do capitalismo, toda violação teórica e prática da cultura democrática se torna “desculpável”. Trata-se, assim, de uma dificuldade compulsiva, legada pela tradição do Manifesto, em lidar com o problema político em sua consistência própria e com a experiência histórica em sua indeterminação última.[4] Apesar de sua irretocável citação acima, onde Žižek abre o horizonte utópico-realista de uma transição social e ecológica operada por uma práxis de reconstrução dos bens comuns no interior de uma vida livre, plural e democrática, ele continua preso no anseio escatológico por uma ruptura redentora. E, com isso, perde a possibilidade de se liberar das amarras da ginástica dialética herdada do Manifesto Comunista, o que lhe permitiria se aproximar da leveza lúcida e complexa de outro Manifesto, o Convivialista, que é mais apto, sem dúvidas, para enfrentar o sufoco do espírito do tempo.[5]
1 A respeito disso, vale notar que o título do original em alemão fala de “atualidade tardia do Manifesto Comunista”, o que sinaliza o problema central do livro (Die verspätete Aktualität des Kommunistischen Manifests” (Francfort-sur-le-Main: S. Fischer Verlag GmbH). A tradução da Vozes segue o caminho da tradução francesa (L’actualité du Manifeste du parti Communiste, Fayard, 2018), que torna o título mais compreensível ao leitor comum tirando a adjetivação.
2 Esta é uma questão muito trabalhada, atualmente, pela sociologia do trabalho e das desigualdades sociais. Vale notar que esta nova forma de exercício de poder pela autoexploração dos indivíduos é brilhantemente analisada pelo filósofo coreano Byung-Chul Han em livros como Sociedade da performance, Sociedade do cansaço e Capitalismo e impulso de morte. Quase toda a obra de Han está publicada em português pela editora Vozes.
3 LEFORT, Claude (1986) Relecture du Manifeste Comuniste. In: LEFORT, Cl. Essais sur le politique. Paris: Points, 1986, p. 204, 206-7.
4 Penso nesta tradição do Manifesto como sendo a hóstia do comunismo, como diz com força Claude Lefort: o Manifesto “não seria justamente a parte morta [da obra de Marx?] Seu sucesso só se sustenta, talvez, através do trabalho dos ratos que carregam o Manifesto entre seus dentes para outros ratos. pelos quatro cantos do mundo, o que fez dele a hóstia do comunismo” (LEFORT, Claude, op. cit., 198). Não por acaso a transubstanciação do texto em práxis assumiu a natureza de uma “religião de salvação terrestre”, como diz Edgar Morin.
5 Refiro-me a: Internacional Convivialista (2020) Segundo Manifesto Convivialista: por um mundo pós-neoliberal. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
André Magnelli
É idealizador, realizador e diretor da instituição em rede de livre estudo, pesquisa, escrita e formação Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com). Sociólogo, professor, editor, artesão cultural e empreendedor público. É co-coordenador do Ateliê de Humanidades Editorial, do Cadernos do Ateliê e do podcast República de Ideias. É editor da tribuna Fios do Tempo: análises do presente. É curador e co-organizador do “Ciclo de Humanidades: ideias e debates em filosofia e ciências sociais”, realizado mensalmente pelo Ateliê de Humanidades e o Consulado da França desde 2019
Adquira o livro clicando aqui!
Clique no link abaixo e confira a resenha completa:
Compartilhe nas redes sociais!
Comentários
Seja você a fazer o primeiro comentário!