O caminho de Clara de Assis
Por Frei José António Correia Pereira
Ao darmos este título ao textos, estamos afirmando que Clara de Assis, como Francisco, buscou uma resposta própria aos desafios que a sociedade e a Igreja do seu tempo lhes colocaram. Inseridos na sociedade do seu tempo, reagiram como cristãos e deram a sua resposta de fé. Tentaram, no seu tempo, conformar a vida com o Evangelho. Como diz o Papa Francisco, na “Fratelli Tutti”: procuraram dar à vida um sabor do Evangelho.
Vamos dar uma grande ênfase à resposta pessoal de Clara!
Sabemos que Clara e Francisco agiram em conjunto, sobretudo enquanto Francisco viveu, mas não esqueçamos que de 1226, ano da morte de Francisco e 1253, ano da morte de Clara, ela percorreu sozinha o seu caminho (27 anos), muitas vezes sem o apoio e até com a oposição da fraternidade dos irmãos (salvo alguns da primeira hora) e contra o sentir da Igreja de Roma, encarnado na pessoa do Papa, sobretudo de Gregório IX, que lhe quis impor um estilo de vida que ela sempre rejeitou.
A sua resposta, inserida, naturalmente no movimento franciscano, é pessoal. Ter isto em conta é importante, porque muitas vezes Clara é vista como figura menor, sempre na sombra de Francisco. (Felizmente que já começou, creio que no Brasil, um movimento para declarar Santa Clara Doutora da Igreja). Nada mais justo. Das consagradas do seu tempo, é a das pouca que deixou escritos
E ela tem vida própria e a resposta que encontra é nova para o seu tempo e até, para o nosso tempo. Para compreender essa resposta nova, temos de ter em conta a sociedade e a Igreja do seu tempo. No essencial, é disso que trata a primeira parte do livro: Santa Clara de Assis: época, carisma e espiritualidade.
Época:
Não nos vamos perder em analisar todos os contornos de uma época em profundas transformações. No tempo de Clara, na Europa, sentia-se o fim de um sistema de vida social, que conhecemos como feudalismo.
No feudalismo, o território de cada nação-estado, estava dividido em parcelas de terra e de poder, feudoscom fronteiras e vida própria. A população que nela habitava, estava dividida em três classes, clero (que rezava), nobreza “que lutava” e povo que trabalhava e era propriedade do Senhor.Havia a alta e a baixa nobreza e o alto e o baixo clero.
Num estado, ou nação-estado, todo o território pertencia ao Príncipe que detinha todo o poder dentro do estado, dependendo só do Imperador, que garantia a união entre os estados-nação. O Senhor da nação, geralmente considerado rei, o soberano, era o primeiro da nobreza, que tinha como principal dever defender o seu o seu território. Para uma melhor administração o Senhor, quando queria pagar os favores que lhe prestavam os membros da nobreza,sobretudo na defesa do seu território, cedia partes do seu território. Assim se formavam, dentro do estado-nação, grandes e pequenos feudos cedidos pelo rei. Cada feudo era autónomo, embora continuando a ser propriedade do soberano.
Cada feudo era autónomo, com fronteiras próprias e as suas leis. Às vezes pagava-se imposto para passar de um feudo para outro. Nesta sociedade, o sinal de riqueza era a posse da terra. Rico era quem possuía as terras que constituíam o feudo. Era uma sociedade pouco participativa, hierarquizada, com o Imperador (o senhor dos senhores) no topo da pirâmide e o povo que trabalhava pela comida, na base da pirâmide. Era uma sociedade fechada. A liberdade media-se pelos privilégios que se recebiam do senhor feudal. Era mais livre quem tinha mais privilégios dos senhores, que governavam com autoridade de origem divina. Assim se organizou o Império do Ocidente. Carlos Magno, a 25 de dezembro de 800 fez-se coroar, “Magnus augustos ad Deo coronatus magnus pacificus imperator” (p.33). O seu poder era considerado e origem divina e dominava toda a Europa, com relações mais ou menos tensas com todos os soberanos das várias nações europeias. Ao lado deste poder político de origem divina, outro poder de origem divina marcava presença, o poder do Papa da Igreja católica. Nem sempre a relação entre estes dois poderes, de origem divina, era pacífica. O que fazia que as várias nações autónomas oscilassem entre obedecer ao poder do Imperador ou ao poder do Papa, conforme as conveniências. Tanto o Imperador como o Papa tinham os seus exércitos e os seus canais de influência.
A esta sociedade, a Igreja respondeu com estruturas cada vez mais centralizadas, e mais poderosas. Ao lado do Imperador e do seu império, nasceram estruturas eclesiásticas, territórios pontifícios, com uma estrutura cada vez mais sólidas: no topo está o Papa, depois os bispos que recebiam como que um feudo que era o território diocesano, com alto clero e baixo clero e o povo cristão.
E havia também os grandes mosteiros que vivam, quase todos, segundo a Regra de S. Bento e que, muitas vezes por influência da nobreza se foram espalhando por toda a Europo.
O cuidado pastoral da igreja foi assumido cada vez mais por grandes mosteiros, às vezes grandes feudos, sob espalhados por toda a Europa. À volta das catedrais, nasceram as escolas que davam catequese e instrução à classe da nobreza.
Mas o povo simples que trabalhava as terras pertencentes às grandes abadias, era ali que recebiam o ensino e a catequese. Os grandes mosteiros da Europa foram grandes centros de espiritualidade, mas também de cultura e de ensino.Podemos dizer que a europa foi cristianizada pelas comunidades religiosas. O monaquismo foi a resposta da Igreja à sociedade feudal.
A partir do século XI, a estrutura da sociedade feudal começou a ser posta em causa pelo movimento das comunas.O movimento das comunas nasceu nas cidades. Nos feudos existiam várias cidades, umas governadas por delegados do Senhor feudal, outras governadas pelos bispos, como delegados do poder papal.
Nas cidades viviam os burgueses, os comerciantes dos vários ofícios que sentiam cada vez necessidade de liberdade para poder fabricar e vendar. A classe dos comerciantes e artesãos exigia cada vez mais liberdade para decidir sobre a sua cidade, liberdade para circular pelos outros feudos para vendar (o pai de S. Francisco andava pela França quando ele nasceu). Nascia, assim, uma nova classe social e um novo estilo de vida. Dentro das cidades os burgueses organizavam-se em confrarias (fraternidades) para defender os seus membros, onde as relações eram horizontais e não verticais e hierárquicas como no feudalismo.
Muitas comunas (cidades) começaram a defender a sua autonomia e liberdade em relação aos senhores feudais e os conflitos sucediam-se. (Francisco e Clara andaram envolvidos nestes conflitos. Francisco, da classe burguesa, porque se alistou na guerra entre os burgueses de Assis contra Espoleto onde residia o senhor feudal; Clara, da nobreza, foi obrigada a refugiar-se em Perúsia com toda a sua família, enquanto os cavaleiros nobres lutavam contra os burgueses de Assis).
Os conflitos terminavam com um acordo onde eram reconhecidos os direitos dos burgueses e dos nobres, numa carta foral, que dava certa autonomia às cidades. Às vezes essa autonomia eram uma autêntica independência. Algumas vezes isso levou à criação de cidades-estados totalmente autónomos. como no caso de Veneza. Com o movimento das comunas, das cidades, deu-se uma revolução social que tinha as seguintes características:
– passou-se da ruralidade ao urbanismo;
– passou-se duma sociedade estável, fixa, a uma sociedade em movimento, sem fronteiras;
– passou-se de uma atitude de vassalagem a uma atitude de associação e participação (as confrarias).
Todo este movimento, devemos dizê-lo, tinha o dinheiro como motor, o que veio a trazer novas desigualdades sociais.
Para o povo simples, o movimento das comunas criou muita instabilidade. O povo cristão das comunas sentiu-se abandonado pela Igreja que continuava com estruturas feudais, cada vez mais distante do povo simples. Isso deu origem ao aparecimento de grupos que se sentiam enviados a evangelizar por sua conta e risco. Nasceram assim os movimentos pauperísticos. Eram movimentos de leigos, homens e mulheres, que a partir da Bíblia, lida em vernáculo, se organizavam em fraternidades evangelizadoras. A espiritualidade desses grupos pauperísticos caracterizavam por:
– regresso às origens: regresso à Igreja primitiva. A vida apostólica era o modelo;
– vida comunitária: regressar à origens era descobrir a vida em fraternidade, às vezes fundavam-se até comunidades mistas de homens e mulheres. Neste ponto respondiam à busca de fraternidade vivida até nas confrarias;
– a pobreza: a vida inspirada no Evangelho deu origem a expressões radicais de pobreza. Na crítica a uma Igreja rica, inspiravam-se no seguimento de Jesus e na imitação da Igreja primitiva.
– o evangelismo: em todos estes grupos, os ortodoxos submetidos à hierarquia, como os grupos heréticos, tinham uma grande sede de conhecer os textos bíblicos, que se liam na própria língua e eram interpretados de forma textual.
– pregação: no século XIII deambulavam pela Europa os pregadores ambulantes, leigos e sacerdotes, uns com licença dos bispos, outros sem licença. Eram grupos de penitentes, uns ortodoxos, outros hereges. Tanto uns como outros, eram muito críticos em relação à Igreja feudal e os seus sinais de grandeza e riqueza.
Houve muitos problemas entre a hierarquia e estes grupos, que sem orientação, muitas vezes caíam em heresias (p. 54). Por isso foram combatidos pela Igreja. A formação de fraternidades deste género foi duramente combatida pela hierarquia, que via neles uma forma de fuga à sua obediência e orientação dos bispos. Às vezes foram combatidos com violência como no caso dos Albigenses, contra quem o Papa organizou uma cruzada.
Beguinatos
Foi dentro deste movimento que a mulher começou a encontrar pelo seu lugar na Igreja. Até então, a mulher estava destinada ou ao casamento ou ao mosteiro. Em certos grupos pauperísticos, as mulheres pregavam e eram até ordenadas para a Eucaristia.
Um desses grupos ganhou notoriedade, o grupo das Beguinas. Eram leigas que formavam comunidades, às vezes aldeias inteiras, onde recebiam os pobres a que serviam. Tinham votos privados, formavam comunidades e eram assistidas, sobretudo, pelos franciscanos e dominicanos. Na Holanda e Bélgica, no século XIII chegaram a existir 90 beguinatos, com cerca de 200 mulheres cada um. Em Bruxelas os beguinatos existiram até meados do século passado e, hoje, há o roteiro turístico dos beguinatos. Em Colónia, no século XIII, existiam 1200 Beguinas para 20.000 habitantes. Muitas mulheres consagradas nosbeguinatos, optavam depois pela vida conventual.
Deste movimento dos Beguinatos nasceram pequenas comunidades de mulheres que desejavam viver uma vida mais séria de consagração e procuravam um ponto de referência para a sua vida. Delas e havia de se ocupar, sobretudo o cardeal Hugolino, mais tarde eleito papa como Gregório IX que tudo fez para que Clara fosse esse tal ponto de referência agregador das novas comunidades de mulheres.
Movimento Franciscano
Foi neste contexto, neste background histórico que surgiu o movimento franciscano, que, se, por um lado, está integrado neste movimento de grupos pauperísticos, ganhou forma própria que o distinguia de todos os outros grupos.
Quando o Senhor lhe deu irmãos, Francisco não procurou inserir-se em nenhuma das Ordens antigas, mas antes se deixou inspirar pelos movimentos sociais e eclesiais da época, procurando o seu próprio caminho que tinha as seguintes características:
– mobilidade apostólica: os primeiros franciscanos fizeram-se andarilhos do Evangelho por toda a Europa. Quando chegaram á Alemanha o povo de Erfurt quis fazer-lhes um convento. Eles disseram que não sabiam o que era um convento. Precisavam era de uma cabana perto do rio, para lavar os pés à noite (Jordão de Giano, nº 43).
– Sejam pobres: Não recebam dinheiro nem benefícios. No feudo a terra era o sinal de riqueza, na nova sociedade burguesa o dinheiro é sinal de riqueza que estraga os melhores ideais. Francisco quer viver a pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo, opondo-se sempre a ser remunerado com dinheiro.
– Seja irmãos: nenhum irmão tenha poder ou domínio sobre o outro. Não é uma fraternidade hierarquizada, mas de relações são fraternas. Na fraternidade não há superior ou prior, mas irmão. Assim se dava resposta ao Evangelho e também aos anseios da nova sociedade.
– E chamam-se menores: A menoridade como atitude evangélica. Por um lado, identificavam-se com os menores da sociedade, mas sobretudo com o menor de todos que é Jesus Cristo. A fraternidade era evangélica, até nas atitudes exteriores, fugindo dos lugares importantes da sociedade. Como diz Celano: “os irmãos eram realmente menores, porque a todos submetidos, buscando sempre os últimos lugares (ou os penúltimos, como dizia Charle de Foucauld, porque o último é de Jesus Cristo).
E sempre submissos à santa Madres Igreja. Ao contrário de muitas comunidades da época, que caíam na heresia e se separavam da Igreja, Francisco quis a sua fraternidade sempre submetida à santa Madre Igreja. Foi assim, quando Senhor lhe deu irmãos.
No dia 27 de março de 2011, de noite, sem o consentimento da família, Francisco recebe na Porciúncula a primeira mulher do seu movimento, Clara de Assis. Corta-lhe os cabelos, consagrando-a assim ao Senhor (algo que só os bispos podiam fazer) e Clara começa a busca pelo seu caminho próprio dentro da Igreja.
Carisma – Quando o Senhor lhe deu irmãs
No dia 28 de março, Francisco acompanha Clara à Abadia beneditina de S. Paulo das Abadessas, maior abadia da região. Clara, que antes tinha vendido todos os seus bens e entregado aos pobres, entra na abadia sem dote para apresentar e é aceite como simples serva, serviçal da abadia.
Os familiares não podiam consentir que uma jovem nobre deixasse a casa sem consentimento, se apresentasse sem dote num mosteiro. Se ela optasse por entrar na Ordem de S. Bento com o respetivo dote, a família não se teria oposto. Assim, era uma vergonha para a família. Tentaram demovê-la com violência. Não conseguiram. Os cabelos cortados era sinal de consagração que merecia respeito.
Por volta de 4 de abril, Francisco e alguns companheiros acompanham Clara ao beguinato de Santo Ângelo de Panzo, onde se junta, a 12 de abril a sua irmã Catarina, que toma o nome de Inês, depois de Francisco lhe cortar os cabelos. Pouco dias depois Pacífica de Guelfúcio junta-se a elas.
Clara experimenta assim as duas formas de consagração que a Igreja lhe podia propor, a comunidade monacal de S. Paulo e a comunidade das beguinas de Santo Ângelo. Nenhuma delas satisfez Clara. Poucos dias depois, volta para próximo de Assis, para S. Damião e começa a delinear o seu caminho. Em S. Damião nasce uma nova comunidade, diferente de todas as que existiam até então, e inserida na fraternidade dos Irmãos. E santa Clara vai passar a vida toda a lutar pelo reconhecimento dessa nova forma de vida consagrada.
Em 1215, o 4º Concílio de Latrão definiu que qualquer nova ordem religiosa, devia adotar umas das regras já existentes. Clara sentiu que lhe queriam impor a Regra de S. Bento, que além de obrigar à estrita clausura monacal, também a obrigava a que os seus conventos pudessem ter propriedades, grandes terrenos para garantir o sustento da comunidade. Clara, que optou pela altíssima pobreza, não aceitava essas condições.
Para Clara a pobreza é Nosso Senhor Jesus Cristo, que nasceu pobre, viveu pobre e pobre morreu no patíbulo da Cruz. Ser pobre para ela não era uma questão de ter ou não ter, mas era seguimento de Jesus Cristo pobre e a vida comunitária havia de ser anúncio de Jesus Cristo.
Logo em 1216, o Papa Inocêncio III tratou de apresentar a Regra de S. Bento, como suporte jurídico da comunidade de S. Damião. Perante esse facto, Clara,em 1216, ou
Segundo as últimas investigações em 1214, quando Francisco foi à Espanha. Nessa altura Clara, teve de aceitar o título de abadessa e ficou só a defender o seu projeto, tratou logo de pedir um documento a Inocêncio III, o Privilégio de Pobreza, renovado depois a 17 de dezembro de 1228 por Gregório IX.
Segundo o P. Constantino Koser, a bula Sicut manifestum est de 17 de setembro de 1228 que contém o Privilégio da Pobreza “é, certamente uma das bulas mais importantes e mais espirituais de toda a história dos papas” (P. 132).
O Privilégio de Pobreza, dado por Gregório IX , foi já depois da morte de S. Francisco. Clara estava só a defender o seu projeto perante o poderoso Gregório IX. Este, já como Cardeal, o cardeal Hugolino, protetor da Ordem, grande amigo de Francisco e Clara via em Santa Clara, sonhava com uma nova Ordem que englobasse em seu seio todos os grupos desgarrados que havia no norte de Itália que tivesse à frente a Abadessa de S. Damião como fonte inspiradora.
Essa nova Ordem devia viver segundo a Regra de São Bento e ter propriedades como garantia de futuro. Esta política de Hugolino continuou, ainda com mais força, a partir de 1227, quando Hugolino foi eleito Papa, o papa Gregório IX. Procurou com toda a autoridade fundar a tal nova Ordem que queria que tivesse o nome de Ordem de S. Damião.
Estas comunidades que faziam parte da Ordem de S. Damião, distinguiam-se:
– por depender diretamente da Cúria romana (exemptio);
– pela estrita clausura monacal, segundo o modelo cisterciense (reclusio);
– pelo direito de adquirir propriedades para seu sustento (donatio).
Clara não aceitou os termos nem o espírito desta Regra. “as “Irmãs pobres de Clara” não aceitavam nem a estrita clausura, nem o direito de propriedade, e queriam fazer parte da fraternidade franciscana… (p. 138). Pressionada pela Cúria romana para entrar nesta nova Ordem, Clara, apoiada por alguns irmãos e por Santa Inês de Praga, já depois da morte de Francisco, pediu, em 1228, a renovação do Privilégio de Pobreza, que o Papa Gregório IX aceitou.
O Privilégio de Pobreza é um documento espiritual importante. Nele se afirma o seguimento de Jesus Cristo pobre e humilde. Podemos dizer que é a primeira Regra de Clara.
É um documento programático. Mas é também um documento estratégico. A renúncia a qualquer tipo de propriedade, implicaria que as Irmãs Clarissas não se obrigavam a seguir a Regra monástica. Quem vive em clausura rigorosa, sem qualquer contato com o mundo, tem de ter propriedades para sustentar as irmãs e quem as cultive. Era este o esquema de vida dos mosteiros beneditinos
Ao aprovar o Privilégio de Pobreza, Gregório IX não se dava conta que estava a ir contra os seus próprios projetos. Conceder a Clara o privilégio de nada possuir, significava que S. Damião teria de manter uma clausura abertura à comunidade, de ter relações com o povo cristão que as ajudava com as suas esmolas. As Irmãs davam ajuda espiritual, atendiam os doentes em S. Damião como podemos constatar pelas testemunhas do Processo e Legenda. E além das esmolas que juntavam os irmãos enviados por S. Francisco, o povo cuidava delas com o necessário. Esta abertura não se dava nos mosteiros clássicos sob a regra de S. Bento. Era este estilo de vida nova e diferente que Clara defendia.
Começava a nascer uma forma nova de vida religiosa, onde o acento se colocava mais na contemplação irradiante do que na Clausura monástica rigorosa.
Atualmente a Santa Sé pela Constituição Apostólica “Vultum Dei Quaerere”, distingue quatro formas de clausura para as Irmãs de vida contemplativa. No século XIII, Santa Clara já defendia que em S. Damião devia haver estruturas diferentes para a vida contemplativa.
A Instrução “Cor Orans”, do Papa Francisco que regula as estruturas da vida contemplativa de hoje, teria o apoio de Clara. O acento não é colocado tanto na clausura, no encerramento, mas na forma de vida evangélica (Clara não usa o termo contemplativo, mas evangélico) para “irradiarmos tanto a respeito das que estão perto, como das que estão longe, o odor de uma boa reputação (TCL 58).
Este braço de ferro entre Clara e Gregório IX durou até 1241, ano da morte do papa. Consta que os últimos anos da vida de Gregório IX as relações com S. Damião foram muito tensas. Por um lado, Gregório IX alargava a sua influência a cada vez mais comunidades, enquanto Santa Clara procurava que outros conventos pedissem também o Privilégio de Pobreza, como por exemplo o de Monticello e Florença, alargando assim a sua influência.
Clara teve em Inês de Praga uma aliada sempre fiel. Em 1238 pediu, para a sua comunidade de Praga, o Privilégio de Pobreza. Chegou mesmo a escrever uma Regra que enviou a Gregório IX para a provação. Foi a primeira mulher a escreve uma Regra, mas que Gregório IX não aprovou. Pena que não temos esse texto. Temos sim a Bula a dizer que não aprova.
Sucedeu-lhe Celestino IV, que governou durante menos de um mês. Depois de uma longa sede vacante, foi eleito Inocência IV, em 25 de junho de 1243, que procurou continuar a política de Gregório IX.
Perante a resistência de Clara, ainda tentou obrigar a Regra de Francisco para todas as comunidades da Ordem de S. Damião, mas com estrita clausura e direito a propriedades. No ano de 1247 Inocêncio IV publica uma nova Regra para as “monjas enclausuradas da Ordem de São Damião”, mandando que “professeis a regra do bem-aventurado Francisco no que aos votos diz respeito”. No entanto, a Regra de Inocêncio IV mantinha o dever de clausura monacal estrita e direito a propriedades.
Foi, certamente, nesta altura, que Clara decidiu escrever a sua própria Regra. Antes, porém, talvez com receio de não ter tempo para o fazer, escreveu o seu Testamento onde resume e recorda toda a originalidade do seu carisma. Poucos dias antes de falecer, recebe a visita do próprio Papa Inocêncio IV em S. Damião para lhe aprovar a regra que escreveu que.
No princípio do movimento franciscano, em maio de 1209, o grupo dos primeiros irmãos de Francisco dirige-se a Roma para pedir a aprovação do seu movimento de penitência. Em 1253, é a Igreja, na figura do papa Inocêncio IV que vai a S. Damião reconhecer a nova Forma de Vida escrita por Clara. A primeira Regra para uma comunidade religiosa escrita por uma mulher e que foi aprovada. Só por isto merecia ser designada Doutora da Igreja.
Clara faleceu a 11 de agosto de 1253. Em agosto de 1255, o Papa Inocência IV canoniza Clara. Sintomático de um certo distanciamento da entre os Irmãos Franciscanos e a Fraternidade das Irmãs, é o facto de só em 1260, cinco anos depois da canonização, se começou a celebrar a festa de Clara em toda a Ordem. Depois da morte de Francisco a Ordem dos irmãos distanciou-se muito de S. Damião. No entanto, S. Damião foi sempre o refúgio e o ponto de referência da intuição original de Francisco. Sobre tudo os irmãos da primeira geração, nunca abandonaram Clara e estavam lá presentes na hora da sua morte. O grande protetor e conselheiro das Irmãs de S. Damião foi Fr. Elias. Mesmo depois de ter sido excomungado, continuou próximo das Irmãs de S. Damião
Em 1260, o corpo de Clara é transladado para a nova basílica e as irmãs de S. Damião, passam a viver no novo convento.
Em 1261 é eleito o Papa Urbano IV que escreveu uma nova Regra, conhecida como regra de Urbano e instituiOrdem de Santa Claraà qual pertenciamas comunidades de estrita clausura “moniales inclusae et pauperes” e também as comunidades ligadas a S. Damião que seguiam a Regra de Clara.
Assim, Clara, depois da sua morte, sem ser consultada, tornou-se patrona de uma Ordem papal de monjas, a Ordem de Santa Clara que englobou até ao século XX as “Clarissas pobres” seguidoras da Regra de Santa Clara e as “Clarissas ricas” que seguiam a Regra do Papa Urbano, as Urbanianas. Todas pertenciam à Ordem de Santa Clara.
Já, em 1288, quando era papa o primeiro franciscano, Nicolau IV, o convento de Assis pediu dispensa do “Privilégio de Pobreza”, voltando, assim, à tradição monástica. Mesmo o convento onde estava sepultada Clara deixou de professar a regra por ela escrita. Só em 1936 regressaram à Regra de Clara. Um sinal de como a Regra de Clara ficou esquecida e ausente da vida da maior parte dos conventos das Irmãs Clarissas.
Só depois do Concílio Vaticano II, a Regra de Clara é reconhecida em todo o mundo e professada pela maior parte dos mosteiros em todos os continentes, embora a influência monacal ainda esteja bem visível, sobretudo na tradição dos mosteiros que durante séculos viveram segundo a regra do Papa Urbano, as Clarissas Urbanianas.
Podemos dizer com Kuster, autorda Dupla Biografiade Francisco e Clara, que a época mais fecunda da Ordem das Irmãs Pobres parece estar agora no seu início.
Espiritualidade
“E nós todos que, com o rosto descoberto, refletimos a glória de Senhor, somos transfigurados na sua própria imagem, de glória em glória, pelo Senhor que é Espírito” (2Co 3,18)
A novidade da espiritualidade franciscana, visível em Francisco e Clara, segundo Hubaut (p. 217) está na “redescoberta da humanidade de Cristo, que nos séculos precedentes tinha sido obscurecida pela majestade de Cristo”. O Cristo Pantocrator corresponde melhor à mística do feudalismo. Segundo o mesmo autor, trata-se do choque da encarnação, que Francisco contempla em três momentos extremos, no nascimento de Belém, no Calvário e na Eucaristia.
Francisco e Clara não viviam a sua fé sob o signo do medo, ou sob o signo da tradição ou do cumprimento de deveres, mas sob o signo do encanto pelo mistério de um Deus que se fez tão pequeno e tão pobre. “Oh! Grandeza admirável, oh! Condescendência assombrosa, que o Senhor de todo o universo, Deus e Filho de Deus, se humilde a ponto de se esconder, para nossa salvação, nas aparências de um bocado de pão” (CO 27).
A mística de Francisco e Clara integram as duas correntes do cristianismo de então: O Cristo Senhor que nos revela a arte romana e os frescos bizantinos, é Jesus Cristo que nos revela Deus que desce e vem ao nosso encontro com vestes de pobreza. Em todos os seus Escritos, Clara nunca fala de Jesus, mas sempre Jesus Cristo, ou o meu Senhor Jesus Cristo. Jesus Cristo é Deus através do humano, diz Hubault.
(Poderíamos divagar um pouco sobre como se chegou a esta mística. Tem muito a ver com o tempo das cruzadas, das viagens de muito cristão à Terra Santa, da descoberta da Sagra Escritura na língua vernácula. Tudo contribuiu para a descoberta da dimensão humana de Jesus, um Deus que desce e se faz último e termina a vida lavando os pés aos discípulos (chave leitura de Francisco, chave que usa para marcar a sua comunidade de irmãos que obedecem uns ouros, que lavam os pés uns aos outros).
Deus desce e faz-se pobre e humilde… até à morte de Cruz. Para Ratzinger isto significa uma viragem para a história da mística. Esta mística da encarnação vai ser o cerne da espiritualidade de Clara. Para Clara e Francisco, para quem Clara era a Irmã cristã, ser cristão é tornar a vida uma “exegese do Evangelho”, expressão de Bento XVI na Verbum Domini, 83.
Se a mística da Encarnação é uma viragem na história da mística cristã, então Clara e Francisco são os principais iniciadores dessa nova mística na igreja.
Michel Hubaut afirma, no seu livro O Rosto humano de Deus,que Francisco e Clara “Não escreveram nenhum tratado sistemático de teologia (Bartoli, grande biógrafo de Santa Clara, fala mesmo da teologia de Clara), mas acolheram um Homem vivo, de que, com rara subtileza, captaram todas as características” (Hubaut, 92; p. 210).
Se o objetivo da contemplação de Clara de Clara é acolher o homem vivo e captar-lhe as características, como diz Hubaut, o caminho é olhar o Espelho que é Jesus Cristo, o espelho de Deus vivo.
Em pleno século XIII, Clara, através da contemplação do Espelho que é Jesus Cristo, torna-se mestra da leccio divina:olhar, meditar e contemplar e imitar são os passos da oração de Clara: “Fixa o teu olhar no espelho da eternidade, deixa a tua alma banhar-se no esplendor da glória e une o teu coração Àquele que é a encarnação da essência divina, para que, contemplando-O, te transformes inteiramente na imagem da sua divindade”(3CCL 12-13).
Contemplar espelho é contemplar toda a vida de Jesus. Deus só se pode tornar visível como em espelho na natureza, nos seres vivos, mas sobretudo em Jesus Cristo. É o método da especulação, que segue também S. Boaventura no Itinerário da mente para Deus.
A contemplação através do espelho que é Jesus Cristo, é escola diária, onde se contemplam os mistérios de Jesus Cristo e se aprendem as suas virtudes. A especulação (a visão como num espelho) é transformante: “Olha, medita e contempla e que o teu coração se inflame na sua imitação” (2CCL 20).
Recordemos o texto da Carta aos Coríntios. “E nós todos que, com o rosto descoberto, refletimos a glória de Senhor, somos transfigurados na sua própria imagem, de glória em glória, pelo Senhor que é Espírito” (2Co 3,18).
Na quarta Carta a Inês de Praga, temos as várias etapas dos passos de Jesus que Clara contempla. No centro deste espelho “Contempla no princípio deste espelho a pobreza…contempla ao centro deste espelho a humildade e a santa pobreza… contempla no fim deste espelho a inefável caridade… desta maneira o teu coração se inflame duma caridade cada vez mais forte…”. É a humildade de Deus, revelada no mistério da Encarnação que encanta Clara: “Oh maravilhosa humildade! Oh admirável pobreza! O Rei dos anjos, o Senhor do Céu e da terra reclinado num presépio!” (4CCl 20-21).
Essa nova espiritualidade fez com que Francisco sentisse que a sua missão era percorrer os caminhos em fraternidade, anunciando o Evangelho de forma nova. Nunca antes de Francisco um fundador de uma Ordem religiosa tinha enviado os seus membros a encarnarem o Evangelho entre “a gente vulgar e desprezível, entre pobres e fracos, os doentes e os leprosos e os mendigos dos caminhos” (1R 9,2)
Clara encarnava esse mesmo Evangelho na Fraternidade de S. Damião. Para Clara, refletir-se no espelho que é Jesus Cristo, é a sua atitude de vida. É viver segundo a forma do santo Evangelho. Ela não fala de vida contemplativa, mas em vida evangélica. “Por amor do santíssimo Menino envolto em pobres panos e reclinado no presépio, e de sua Santíssima Mãe, admoesta, suplico e exorto as minhas irmãs que se vistam com trajes pobrezinhos” (RCL 2, 25). Ainda hoje, a Ordem das Irmãs Pobres de Santa Clara, é a única Ordem na Igreja que não tem um hábito obrigatório para toda a Ordem. O que interessa é que se vistam pobremente por amor a Jesus Cristo. Há países com várias formas de hábito e de várias cores e até com vestes civis normais.
A sua missão era viver segundo a forma de vida do santo Evangelho, ser modelo e espelho, “exegese” da Palavra de Deus para toda a Igreja, como diz no testamento: “Porque o Senhor não nos colocou como exemplo e espelho, somente para os outros homens, mas também para as irmãs que o Senhor chamou à nossa vocação, de modo que também elas se convertam em exemplo e espelho das pessoas que vivem no mundo” (TC 19-23).
Nas cartas de Clara vamos encontrar as atitudes e os verbos da oração cristã. No paganismo a oração começa na pessoa, que nas suas necessidades, problemas e alegrias se volta para os deuses e até os inventa a seu bel-prazer. Na fé cristã e na oração cristã tudo começa em Deus. É Deus que fala e que envia (Abraão). A atitude do cristão não é falar, mas escutar, acolher, deixar a terra segura e entrar em êxodo (Abraão): “Contempla diariamente este Espelho, ó rainha e esposa de Jesus Cristo. Observa nele o teu rosto para que a grande variedade de virtudes que embeleza o teu interior e exterior seja como um manto de flores como convém à filha e esposa do Rei” (4CCL 15.
A contemplação de Clara é transformante: olha, medita, contempla e imita. Por isso é que as estruturas fraternas da comunidade de Clara nada tinham a ver com as estruturas monacais do feudalismo. Clara, que a da altura foi obrigada a aceitar o título de Abadessa, deu-lhe um significado novo. Ainda hoje podemos ver o lugar que Clara ocupava no refeitório de S. Damião. Não era no topo da mesa (modelo vertical de fraternidade feudal), mas no meio das irmãs, modelo novo de fraternidade. Pena que estes pequenos sinais não se repitam hoje, tanto nas fraternidades das Irmãs Clarissas, como em outras fraternidades religiosas, onde o cargo de responsável da comunidade ainda é um título e não um serviço. Tudo isto tem a ver com a forma nova de vida religiosa que Clara quis para a sua comunidade.
Perante Deus que fala, a atitude cristã é escutar e obedecer que na estrutura da palavra tem o mesmo significado. A obediência em Clara não tem estruturas hierárquicas, mas fraternas e evangélicas. Por isso as irmãs devem-se reunir em capítulo para falar das coisas da comunidade. “Os assuntos respeitantes à utilidade e bem espiritual da comunidade, devem ser tratados em capítulo. Com efeito, muitas vezes é ao mais pequenino que o Senhor revela aquilo que mais convém” (RCLA 4,15).
É uma obediência circular, não hierárquica. A obediência (ob-audire = escutar o que vem de fora) não se refere ao cumprimento de ordens, mas é um estilo de vida, é a escuta da vontade de Deus, que nos chega de todas as maneiras e formas, também através da superiora da comunidade. Como é diferente a visão de Clara da forma tradicional vivida no feudalismo e continuada na Regra do Papa Urbano.
Na oração franciscano-clareana a atitude é de obediência: “Senhor que queres que eu faça” (olha, medita, contempla e imita). A oração cristã e franciscana pratica-se. Ou na expressão do Papa Francisco, é uma oração que nos põe em saída: em saída para a missão, para anunciar a boa nova e em saída como espelho para os de dentro e os de fora.
Durante toda a vida, Clara lutou por esta nova maneira de entender a clausura de uma comunidade aberta aos irmãos, acolhedora dos pobres e doentes, sem a segurança nas propriedades e nos bens materiais.
Santa Clara intui no século XIII que numa sociedade aberta, não fazia sentido a vida enclausurada e reclusa, algo que a Igreja através de Papa Francisco acaba de estender a toda a Igreja, apresentando várias formas de viver a clausura na vida contemplativa, até dentro da mesma Ordem. A comunidade de santa Inês de Praga fazia serviços no hospital que ela construiu ao lado do seu mosteiro. Para Clara as irmãs da sua comunidade deviam ser “amigas do silêncio e irmãs da cidade”. Expressão feliz que Martina Kleider-Koss, leiga, mãe de quatro filhos, professora de teologia em Osnabrück e uma das grandes investigadoras da vida e obra de Santa Clara, encontrou para definir esta nova forma de vida religiosa. Será que ainda é possível recuperar esta visão nova de Clara que se perdeu ao longo dos séculos? Kuster, o autor da primeira Dupla Biografia de Francisco e Clara, diz que depois de viverem durante séculos o estilo de vida monástica da Regra do Papa Urbano IV, mesmo para aquelas que professavam a Regra de Santa Clara, este é o tempo próprio de as Irmãs Clarissas assumirem nas suas comunidades o estilo de vida de S. Damião, a Regra de Santa Clara e a espiritualidade que lhe está inerente.
Sobre o autor:
Frei José António Correia Pereira, sacerdote franciscano, é membro da Província Franciscana da Ordem Franciscana. Além de Portugal, estudou e trabalhou na Alemanha, Guiné-Bissau e Moçambique. Em 1985 publicou a primeira edição dos Escritos de Santa Clara em português, cuja segunda edição saiu dez anos depois. Foi diretor do Centro de Franciscanismo da Família Franciscana Portuguesa durante três anos e diretor da Editorial Franciscana durante quinze anos.
O texto acima foi apresentado inicialmente pelo autor na Semana Franciscana, promovida pela Editora Vozes entre os dias 04 e 07 de outubro de 2020. Confira a transmissão no nosso canal no YouTube: youtube.com/editoravozes.
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