Não-coisas – Reviravoltas do mundo da vida

Por: Lucas Machado

Não-coisas - Reviravoltas do mundo da vida
Não-coisas

“Não-coisas”, último livro de Byung-Chul Han publicado pela Editora Vozes, traz reflexões preciosas para pensarmos nossa relação com o mundo hoje, ou, para falar de maneira mais precisa: para pensarmos como perdemos a relação ao mundo, por sermos desligados das coisas lá fora por nossa relação ostensiva com informações, “não-coisas”, justamente, nos termos de Han. Se, no romance, Hisoyaka na Kesshô, “A polícia da memória”, de Yoko Ogawa, de que Han fala no prefácio de seu livro, o controle sobre as pessoas é exercido ao eliminar as coisas do mundo que guardavam a memória e a história da sociedade, em nossa sociedade hoje, se barraria ao acesso a essas coisas não pela eliminação daquilo que existe, mas, pelo contrário, pela proliferação de informações que preencheriam todo o nosso campo de atenção e tornariam, assim, impossível enxergar as coisas, o mundo que ficaria ocultado por detrás delas.

De fato, um dos elementos mais interessantes do livro estaria justamente no modo com que ele apresentaria a relação com coisas dotadas de materialidade e vida própria como uma das modalidades fundamentais da autêntica relação com o outro e, assim, de uma experiência do mundo e da vida que não nos feche na pulsão insaciável de trabalho, desempenho, produção e produção de si mesmo. É por isso que, de uma maneira que pode até parecer curiosa para os leitores assíduos de Han, encontramos no livro uma espécie de elogio da posse como modo de relação com os objetos – embora, é claro, deva-se qualificar essa posse não como sendo uma posse qualquer, voltada sobretudo ao consumo e ao usufruto do objeto para nossa mera satisfação, mas sim como a relação intensiva e intimista que se cria com um objeto quando ele não é uma informação que meramente consumimos, mas uma coisa dotada de uma materialidade própria com que construímos uma história, uma relação. Ou, mais ainda: uma coisa que buscamos preservar em seu ser, dando valor a ela por aquilo que ela é, como seria o caso do colecionador “ideal” de Walter Benjamin,  colecionador que nada mais quer do que preservar o ser da coisa em sua dignidade própria.

Essas considerações de Han são preciosas, pois ressaltam algo que é verdade do pensamento do filósofo desde muito antes de sua publicação do Sociedade do Cansaço, e que aparece de modo proeminente em livros como Filosofia do Zen Budismo, mas que talvez não estivesse colocado ainda de modo tão claro em seus livros mais recentes (embora apareça com cada vez mais proeminência, em livros como Louvor à Terra, o próprio Não-coisas e o Vita Contemplativa, esse último ainda a ser publicado no Brasil): que o outro com que devemos cultivar uma relação intensiva não é apenas o outro humano, ou até mesmo o outro ser vivo. Antes, devemos acolher todas as modalidades do outro em sua dignidade própria, o que significa cultivarmos um respeito, um fascínio e uma admiração inclusive pelas coisas ditas “inanimadas” mas nas quais, se, justamente, não as tratamos como meros instrumentos a serem explorados, mas como um outro que nos abre um outro horizonte de experiência do mundo e de nossa presença nele, descobrimos uma vida própria e uma existência autônoma, que nos permite experimentar o mundo com uma outra intensidade, sob um outro regime de presença.

Pensando sob essa ótica, não é de surpreender que o livro encerre com um capítulo, um tanto destoante dos demais em termos de estilo (lembrando, nesse sentido, o estilo intimista e autobiográfico que Han adota em seu Louvor à Terra), que poderia ser chamado de um elogio ao Jukebox (muito claramente inspirado pelo Ensaio Sobre o Jukebox, de Peter Handke, autor extremamente importante e caro a Han). Afinal, aí, se trata de mostrar como não apenas coisas “naturais”, mas mesmo os autômatos, apesar de criados pelo ser humano, devido à sua profunda materialidade e sua natureza analógica, podem nos inspirar a adotar um outro regime de atenção não apenas em relação a eles mesmos, mas a tudo que nos circunda – o que não poderia ser melhor retratado do que por meio do ato “ritualístico” de inserir uma moeda no jukebox e observá-lo operar pesadamente para, por fim, tocar música de um modo que nos coloca em um estado de espírito distinto, em que nos demoramos na experiência de ouvi-lo. Com seu “Não-Coisas”, Han nos lembra que nossa infocracia, em que nosso consumo exacerbado de informação nos prende em uma relação narcísica com tudo a nosso redor, não nos torna apenas incapazes de nos relacionarmos com essas figuras do outro a que já estamos mais habituados (o ser humano, Deus, ou mesmo os animais e a Natureza): ele nos faz esquecer que as próprias coisas são um outro, e, com isso, um janela para uma outra maneira de ver e de estar no mundo, em que cultivamos uma relação intensiva com tudo ao nosso redor, e não uma mera relação de utilidade e de produtividade.

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Lucas Machado é professor de história da filosofia pela UFRJ, doutor em filosofia pela USP e atual diretor da Associação Latino-Americana de Filosofia Intercultural (ALAFI). Também traduz, pela Vozes, obras de filosofia alemã para o português, de autores como Markus Gabriel, Byung-Chul Han e Dieter Henrich.