Maria Lucia Abaurre Gnerre: “com essa edição, a Editora Vozes escreve um novo capítulo desta história do Gita no Brasil”

Por Profa. Dra. Maria Lucia Abaurre Gnerre – Profa. Associada – Departamento de Ciências das Religiões/UFPB.

A nova edição do Bhagavad-gītā, recém-lançada no Brasil pela editora Vozes, com comentários do Prof. Ithamar Theodor, representa um farol, uma luz em forma de texto, num momento histórico onde as luzes se fazem tão necessárias. Trata-se de uma edição muito bem elaborada, onde o organizador–um professor renomado de estudos hindus no Zefat Academic College (Israel) – nos apresenta o seu ponto de vista ou seu dharshana[1]sobre este texto basilar da tradição hindu. Assim, para compreendermos o diferencial desta obra, devemos observar antes de tudo o subtítulo que o Bhagavad-gītā ganhou nesta edição: “Textos, filosofia, estrutura e significado”. Tanto no subtítulo escolhido quanto no início de sua apresentação, Prof. Ithamar Theodor destaca que, de todas as possíveis abordagens para este texto polissêmico, será privilegiada nesta edição uma abordagem pautada por questões filosóficas e teológicas, justamente aquelas que se fazem mais necessárias para nossa compreensão no momento presente.

Mas, antes de tudo, aqueles que estão tendo seu primeiro contato com o famoso épico Hindu, podem estar se questionando sobre o básico: afinal, do que trata o Bhagavad-gītā? Ora, mesmo um questionamento simples como este pode gerar respostas que enfatizam diferentes aspectos, a depender do ponto de vista do leitor, mostrando já de início a natureza multifacetada dessa obra escrita há mais de dois milênios. Assim, se nos ativermos ao enredo central do texto – que é na verdade um extrato do grande épico hindu Mahābhārata[2] – observamos que o Gita segue uma estrutura épica que se organiza em torno do famoso diálogo entre dois heróis: Arjuna, o famoso líder do clã dos Pāṇḍava e o próprio Deus Kṛṣṇa, que neste contexto exercia o papel de seu cocheiro e conselheiro, em meio a um campo de batalha muito peculiar. De acordo com Theodor (2021, p.15), as circunstâncias épicas são bastante dramáticas: em virtude de uma longa disputa familiar que envolvia terras e reinos, todos os exércitos do mundo acabam se reunindo no famoso campo de batalha de Kurukṣetra[3], sendo que algumas armadas se alinham com um dos ramos desta família, aquele representado pelos Pāṇḍava ou os Filhos de Pāṇḍu, enquanto outros exércitos se alinham do lado dos Kaurava, ou os Filhos do rei cego Dhṛtarāṣṭra, que naquele momento estava reinando sobre as terras em disputa. Arjuna, que é o líder do primeiro clã e de suas armadas, sente que aquela guerra se converterá num massacre fratricida, e desenvolve um estado de paralisia quando se dá conta que será necessário apontar suas armas para familiares, amigos e professores; pessoas do seu convívio e respeito. Nessas circunstâncias tão peculiares e dramáticas, o herói expressa então seu desejo de abandonar totalmente a guerra, não fazer ação alguma, e assim evitar a luta e a morte de seus próprios parentes.

 Desta forma, poderíamos responder à pergunta do parágrafo anterior sobre o conteúdo do Gita como sendo uma narrativa mítica de uma guerra fraticida entre dois clãs rivais, ocorrida num país distante, num passado longínquo. Uma narrativa organizada em forma de diálogo, na qual uma divindade azulada faz preleções a um guerreiro assombrado pelo medo da própria guerra. Um texto que, visto por esse prisma, não pertenceria de forma alguma a nossa cultura ou a nossa realidade. Porém, ao descrevermos o Gita apenas como narrativa pertencente ao passado longínquo de um país distante, estaríamos estabelecendo uma visão profundamente reducionista sobre o texto. Afinal o Gita em sua dimensão filosófico-teológica -justamente aquela que é enfatizada nesta edição – diz respeito a toda humanidade e não somente aos Bharatas (que mais tarde passam a ser conhecidos como Hindus), e seus ensinamentos não se perderam nos tempos longínquos. Na verdade, esse texto representa um de nossos grandes patrimônios sapienciais, patrimônio este que transcende diferenças históricas e culturais. É um texto resplandecente, que traz consigo uma guirlanda de ensinamentos que podem se apresentar de diferentes formas, para todo e qualquer ser humano que sobre ele se debruçar.

Mas tais ensinamentos, na maioria das vezes, não se revelam de uma só vez, na primeira leitura. Afinal estamos tratando de uma obra que deve ser lida diversas vezes, apresentando ao leitor diferentes ensinamentos, em diferentes momentos de suas vidas. Como uma mandala ou uma flor de lótus que desabrocha em camadas, há camadas de ensinamentos contidas nesta obra. E o autor desta edição comentada, com a generosidade de seus comentários, nos ajuda nesse processo de desabrochar do Guita. Tanto em sua introdução, quanto em seus comentários ao longo do texto, vemos um trabalho minucioso de trazer “acessibilidade” do leitor a estas diversas camadas de ensinamentos nele contidas, destrinchando conceitos filosóficos centrais da obra.

Justamente nesta perspectiva filosófica, como nos aponta o organizador, no coração do Gita está o Dharma, um termo “central para o pensamento indiano e pode ser traduzido como religião, dever, moralidade, justiça, lei e ordem” (THEODORE, 2021, p. 16).O Dharma é tudo isso e muito mais na tradição hindu. Mas vale lembrar que também existem no hinduísmo uma série de tradições que abdicam do cumprimento do Dharma e privilegiam a renúncia como caminho, como podemos perceber nos textos dos Upanishadsque antecedem o próprio Gita. O caminho do Dharma é aquele que valoriza justamente a ação no mundo como como caminho de libertação espiritual (Moksha): o indivíduo, de acordo com esta concepção de Dharma apresentada no Gita, pode praticar a renúncia sem precisar abdicar de praticar as ações que lhe são colocadas nesta vida. Na verdade, ele deve se dedicar sim a abdicar do fruto de suas ações, ao praticar cada uma delas com devoção ao absoluto, sabendo que todas as ações são parte desta ordem cósmica absoluta, que na tradição Vaishnava[4] é o próprio deus Krsna. Nesta perspectiva, a própria prática do Dharma pode ser compreendida como uma prática de Yoga: o chamado Karma Yoga, ou Yoga da ação, que é concebido para ser praticado diariamente, fora dos ambientes de reclusão (ou mesmo dos tapetinhos modernos), através de uma postura mental de entrega dos frutos das ações ao próprio absoluto, como vemos no terceiro capítulo da obra por exemplo, que se intitula “O caminho da ação iluminada”. Assim, tanto o Dharma quanto o Karma Yoga são propostas para uma prática de vida que conduz a libertação por meio da ação, não da renúncia e do isolamento do mundo.

Em função de ensinamentos como este, de caráter filosófico-conceitual, porém profundamente aplicáveis às vidas humanas, é que podemos afirmar que o Guita também nos diz respeito agora, no contexto de uma Pandemia que assola o mundo e que desafia os limites da própria vida humana. O Guita nos diz respeito agora, a cada vez que saímos nas ruas do Brasil, e nos deparamos com os desafios e “guerras” que o cotidiano nos impõe. O Guita nos diz respeito agora, a cada momento no qual somos impelidos a sair para o mundo, quando nosso maior desejo seria permanecer em casa. O Guita sempre teve e sempre terá algo a nos dizer: afinal, para além sermos brasileiros ou indianos, somos humanos. E os ensinamentos aqui contidos tratam justamente da superação de desafios inerentes a nossa condição humana universal. São elos que nos unem há milênios.

Por fim, é importante ressaltar neste momento em que trazemos o conteúdo do texto para perto de nós, que existe toda uma história das relações dos brasileiros com o Bhagavad-gītā, história que perpassa as edições anteriores da obra no país que remontam a sua primeira publicação em 1924[5], e registra um “boom” de edições no contexto dos anos setenta, com a chegada da famosa edição “O Bhagavadgita como ele é” de A.C. BhaktivedantaSwamiPrabhupada, e também versões acadêmicas com traduções direto do sânscrito para o português. Esta relação dos brasileiros com o Gita, além de literária, se estende para a música popular brasileira, onde seus versos foram adaptados por Paulo Coelho e Raul Seixas e na famosa composição homônima, e musicalizados também no famoso álbum “Canções do divino mestre”, baseado na tradução do Bhagavad-gītā por Rogério Duarte, musicalizada por grandes intérpretes da MPB. Agora, com essa edição, a Editora Vozes escreve um novo capítulo desta história do Gita no Brasil, trazendo o épico hindu ainda mais próximo de nós, num momento histórico em que ele se faz mais necessário!


[1]Dharshana é um termo Sânscrito que significa “compreensão, ponto de vista, doutrina”. Também se refere aos sistemas prático-filosóficos reconhecidos pelo hinduísmo ortodoxo.

[2]Mahābhārata(o grande bhārata), é o principal texto épico desta tradição, que narra a fundação da Índia (terra dos bhārata). A obra teria sido escrita pelo sábio Vyasa(também um autor mítico) e contém 110.000 slokas (estrofes), distribuídas em 100 capítulos. Segundo Heinrich Zimmer (1986), trata-se de uma epopeia oito vezes maior que a Odisseia e Ilíada de Homero juntas (Cf. GNERRE, MLA. Religiões Orientais: Uma introdução. Ed. UFPB: João Pessoa, 2010, p. 62)

[3] O termo significa “campo dos Kuru”. Kuru é sinônimo de Kaurava. Arqueólogos acreditam que o campo fosse situado entre os rios Yamuna e Sarasvati, próximo a antiga Hastinapura (a cidade do Elefante), nas proximidades de Delhi (Cf. GNERRE, 2010, p. 61)

[4]A respeito da tradição Vaishanava (devotos do Deus Vishnu), sua história e práticas, cf. VALERA, Lúcio. A mística devocional (bhakti) como experiência estética (rasa): Um Estudo do Bhakti-rasāmṛta-sindhu de RūpaGosvāmī. 2015. 230 p. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora.

[5]A este respeito, cf. APOLLONI, Rodrigo Wolff. “A ‘moldura esotérica’ de A Sublime Canção da Immortalidade”: Análise de elementos de uma antiga tradução do BhagavadGîtâ. In: Revista de Estudos da Religião – REVER, 2010.