A Metafísica de Aristóteles

Um detalhe pitoresco sobre seu título serve como indício da relevância filosófica da Metafísica e ajuda a entender como ela pôde sobreviver a mais de vinte séculos, suscitando ainda hoje tanto interesse. Esse nome não foi dado por seu autor, Aristóteles, aliás, sequer foi usado por ele ao longo da obra. Sua origem remonta à expressão τὰ μετὰ τὰ φυσικά <ta meta ta physika> – em tradução livre: os que estão depois da física. Foi só após a morte de Aristóteles que a expressão passou a ser adotada, ao que tudo indica, por conveniências editoriais. Sua condensação no nome μεταφυσικά <metafísica> para designar o rol de Livros que ele rotula levaria mais algum tempo. O registro mais antigo da palavra encontra-se no limiar da era cristã, no legado do historiador Nicolau de Damasco (64 a.c. - 4 d.c.). É, pois, a referência ao elenco de Livros com que estamos às voltas aqui que culmina por dar nome a toda uma disciplina filosófica, a metafísica. Nada mais justo, portanto, que reconhecer em Aristóteles o patrono de um dos ramos da filosofia, ainda que não tenha sido ele o primeiro a tratar dos assuntos que a ocupam.

A importância de Aristóteles, por seu turno, vai muito além da autoria do mais antigo trabalho sistemático sobre metafísica que alcançou os dias atuais. São dele também os mais antigos trabalhos sistemáticos sobre lógica – os Primeiros Analíticos – e sobre teoria do conhecimento – os Segundos Analíticos – que nos chegaram. Todo esse legado influenciou decisivamente a produção filosófica subsequente e, seja para aprofundá-lo, seja para contrastá-lo, os filósofos continuam a remeter-se a ele, mesmo nos dias atuais. Aristóteles tem seu nome consolidado na História da Filosofia Ocidental como um de seus autores inaugurais, dividindo com Platão um lugar de destaque no alvorecer da filosofia ocidental. É incontornável para quem quer que deseje mergulhar no oceano das questões filosóficas.

Os leitores brasileiros já têm a seu dispor duas traduções de fôlego do conjunto dos quatorze Livros que compõem a Metafísica. A primeira, feita por Leonel Vallandro, foi publicada inicialmente pela Editora Globo em 1969. A outra, mais recente, foi feita por Marcelo Perine e publicada pela Edições Loyola. Essas duas traduções têm sido decisivas para a popularização da obra aristotélica no Brasil e para subsidiar os estudos de Aristóteles em geral, e da Metafísica em particular, que vêm se desenvolvendo no país. Merece destaque a tradução de Perine, que pela introdução explicativa e o copioso elenco de notas que traz, tem dado uma contribuição inestimável para esses estudos. Ambas as traduções, no entanto, têm um inconveniente: não foram feitas a partir do texto grego original, mas vertem traduções para outras línguas. A primeira verte a tradução inglesa feita por David Ross, e a segunda verte a italiana feita por Giovanni Reale. Uma terceira tradução da Metafísica, de autoria de Edson Bini e publicada pela Edipro, circula também no Brasil. Contudo, ela não tem gozado entre os especialistas do mesmo prestígio das duas precedentes. Além desses trabalhos, traduções parciais diretas do original em grego vêm sendo publicadas nos anos recentes. É o caso da tradução realizada por Lucas Angioni do Livro Δ (V), publicada em três partes pelas revistas Phaos e Dissertatio. A tradução que acaba de sair pela Editora Vozes, feita por Vivianne de Castilho Moreira, é a primeira tradução integral, direta do grego, da Metafísica publicada no Brasil.

Por fortuita que possa parecer a série de eventos em cujo bojo nasce a palavra que dá nome à obra, nada aí parece ser fruto do puro acaso, como bem sublinhará, séculos mais tarde, o filósofo alemão Immanuel Kant em suas Preleções sobre Metafísica. Afinal, é para as questões que escapam à alçada da física – e que, neste sentido, estão para além desta – que o autor volta sua atenção no conjunto dos Livros reunidos sob o título póstumo Metafísica. Segundo Aristóteles, ao passo que a física demarca-se por estudar a estrutura do que está sujeito à mudança, à disciplina dedicada ao que vai além da física compete estudar, em contrapartida, os fundamentos inclusive dos objetos imutáveis – dentre os quais estão os geométricos, os números e os estudados pelos lógicos – e também os que mais se afiguram semelhantes a eles: os celestes. Compete, por isso, a essa ciência cujo escopo é ainda mais amplo do que o da física estudar também a natureza e os tipos de explicação causal, os princípios universais que regulam tudo o que há e também o primeiro motor, aquele que põe em movimento sem, contudo, ser ele próprio passível de mudar. Todos esses assuntos e muitos outros, com eles conexos, são tratados na Metafísica com a densidade e a argúcia que se espera de um dos maiores nomes da História do Pensamento Humano.