Vozes entrevista: uma conversa sobre os desafios da educação e inclusão, com Sílvia Ester Orrú
A história de um grupo que se movimenta em luta social pelo acesso e defesa de direitos sociais e contra a opressão dos menos favorecidos e das minorias que se encontram em contextos de maior vulnerabilidade não pode e não deve cair no esquecimento das gerações. É esse tema que a autora Sílvia Ester Orrú aborda em seu último lançamento pela Editora Vozes, a obra A Inclusão menor e o paradigma da distorção.
Os acontecimentos e movimentos precisam se manter vivos na memória, não apenas daqueles que vivenciaram a realidade factual, mas também viver na memória de seus descendentes, dos porvindouros e herdeiros de consequências, medos, desafios, lutas e conquistas sólidas gestadas na peleja, no enfrentamento e na resistência permanente aos opressores. Não permitir o esquecimento dos acontecimentos históricos que fomentaram barbáries contra seres humanos em desvantagem social, seja pelo motivo que for, e resistir e se manter conscientemente firme para que a incivilidade e a bestialidade da violência social nunca mais venham a se repetir é o que propõem o texto da obra.
Na entrevista abaixo, conversamos com a autora sobre os desafios da educação e inclusão. Confira:
- Qual o maior desafio na nossa sociedade para garantir a inclusão de todos?
O incomensurável desafio das civilizações mais complexas para a promoção da inclusão de todas as pessoas na sociedade, é o entendimento da diferença como importante atributo da espécie humana. E, a partir dessa compreensão, aceitar o outro com todas as suas diferenças que são, ao mesmo tempo, tão singulares e tão complexas. Esse é um desafio colossal em tempos de tantas barbáries pela Terra e que demanda empatia, solidariedade, respeito, compaixão e lealdade junto aos princípios humanitários mais nobres que repudiam todas as formas de violência a quem quer que seja.
- Na sua opinião, somos realmente capazes de conviver juntos de maneira harmoniosa, ainda que com tantas de diferenças?
Não acredito em harmonia entre seres humanos. Somos, igualmente, diferentes! Isso exige de nós um olhar de aceitação do outro, mesmo embora não exista afinidade entre essa e aquela pessoa.
Exige, inclusive, um olhar para dentro de si, um olhar profundo que possibilite um encontro consigo mesmo e a consciência de que ninguém é, suficientemente, primoroso, sem arestas para serem lapidadas.
Ou seja, a complexidade humana demanda de nós a fecundação e o cuidado eterno com nossa capacidade de amar a nós mesmos e os outros, independentemente das nossas inúmeras diferenças. Esse amor que funda nossa Humanidade em seu sentido mais pleno (compaixão, benevolência, solidariedade, generosidade) não se trata de um amor romântico ou filial. Mas sim de um amor mundi, de um amor fraterno em que todos somos irmãos, filhas e filhos da nossa Mãe Terra, da nossa Casa Comum.
Neste sentido, podem existir os conflitos e existirão, por certo. No entanto, no fecundar e cuidar do amor que gera nossa Humanidade, é que está a possibilidade e a oportunidade de escolhermos aceitar as outras pessoas em suas diferenças assim como, nós mesmos, somos diferentes. E a perspectiva do “aceitar” está para muito além do “tolerar”, pois este último pode implicar em sofreguidão impaciente, em suportar como algo muito pesado.
No entanto, quando aceitamos o outro com suas diferenças e, por amor, desejamos, militamos e fazemos o que está ao nosso alcance para que ele viva uma vida digna como Ser Humano merecedor, livre de preconceitos e discriminações, resguardado da pobreza e da miséria, protegido da escravidão, perseguição e maus-tratos, quando agimos e vivemos dessa maneira, nós empreendemos o respeito tão necessário para a vida na Terra.
É nesta aceitação das diferenças como qualidade própria da espécie humana que se encontra uma das mais importantes capacidades para produzirmos resoluções aos conflitos humanos, em sua densa maioria, fertilizados pela intransigência de gênero, político-religiosa, fundamentalista, racista, sexista, misógina, xenofóbica, homofóbica, étnica e racial.
- Como a imagem afeta quem nós somos?
Os impactos da força das imagens estão presentes e encalacradas em nossa vidaíntima e social, em nossa consciência e, principalmente, em nosso inconsciente. Fazemos uma imagem de nós mesmos, dos outros, dos corpos, do sexo, de deuses, das religiões, da sociedade, de tudo, a partir daquilo que nos apresentam. As imagens dançam em nossas memórias e nos movem emoções.
Vivemos em uma época cuja embalagem vale bem mais que o produto. Os rótulos estão por toda parte, tanto nas coisas como nas pessoas. E estão nas pessoas porque a coisificação do ser humano é uma premissa, é uma austera e deplorável realidade.
Por meio das imagens estáticas ou em movimento, a realidade é, substancialmente, des-realizada. Assim, neste itinerário, nas redes sociais, pessoas trocam (in)formações e imagens sobre fármacos que prometem aquietar crianças, regimes que curam o que não é doença, poções mágicas que não podem criar o prazer, fontes de juventude que não imortalizam corpos, métodos de condicionamento que garantem o que não pode ser condicionado, bênçãos divinas que não podem ser barganhadas, pelejas que não podem conquistar a paz, sorrisos coletivos que não podem conter a dor que leva ao suicídio, e assim por diante. Medo, inquietude e imediatismo se mesclam e tomam assento na cultura contemporânea. A generalização e universalização de ações são expandidas em detrimento da construção de intervenções que levam em conta a singularidade do Ser que nunca se repete.
Não é por ignorância ou ingenuidade que a alta-roda dominante impele à produção de corpos dóceis. Corpos dóceis são passíveis de investimentos, os mais lucrativos, diga-se de passagem. A ganância pela lucratividade alavanca à vontade, portanto, gera o movimento de forças para o controle do indivíduo, do sujeito coletivo, da massa. O que pode ser melhor ao dominador do que ter sob sua destra um corpo obediente? Os processos que se relacionam à vida humana são orientados por dispositivos onde o poder e o saber se plugam em um intento de disciplina, regulagem, submissão, controle, orientação e modificação de toda uma população. Assim é engendrado o Paradigma da Distorção.
Dar lugar à maldade contra o próximo, é ser como um espectro que intenta sufocar o espírito amoroso que deve constituir o ser humano, de maneira tal que o paradigma da distorção vigora e engenha, perversamente, à compreensão original daquilo que conceitua a palavra “Humanidade”, a saber, o sentimento de bondade e compaixão que se firmam no amor e pelo amor ao próximo.
O ato de se desumanizar tem a ver com o afastamento, o rechaço e, finalmente, a perda das qualidades morais e amorosas, intrinsecamente, vinculadas ao conceito de Humanidade. Movido pela ganância e pelo poder, perceptivelmente, pelo egoísmo e narcisismo, o atrelamento ao que é nocivo ao outro vai ganhando corpo. Não repentinamente, mas de forma processual, ignorar a dor do outro vai se tornando algo tão naturalizado que o indivíduo se deteriora em seu caráter humano, e por fim, desumaniza-se quanto à gênese conceitual de Humanidade. A exemplo, nós nos desumanizamos quando somos coniventes com a perpetuação de ações excludentes, discriminatórias, preconceituosas contra aqueles que, pela razão que seja, encontram-se em circunstância de maior vulnerabilidade e fragilidade social. Nós nos desumanizamos quando nos calamos e minimizamos os impactos emocionais e físicos que as crueldades e perversidades da discriminação e do bullying causam na vida daquele que é vítima. Nós nos desumanizamos quando abrimos mão de valores e ideais para justificar nossa efetiva produção de riqueza. Nós nos desumanizamos quando a mesquinhez contrária às políticas públicas para os menos favorecidos é maior do que a caridade de se imaginar no lugar desses outros. Nós nos desumanizamos quando o mar sangrento de notícias jornalísticas já nos parece coisa normal. Nós nos desumanizamos quando naturalizamos a violência obstétrica, o aborto, o estupro e a violência doméstica, portanto, o machismo. Nós nos desumanizamos quando simplificamos que a tortura e a violência da ditadura são o castigo certo para militantes baderneiros da ordem estabelecida pela base governista. Nós nos desumanizamos quando sobrepomos nosso ego e nossa vaidade ao acolhimento do nosso próximo. Nós nos desumanizamos quando abrimos mão da lealdade e presença amiga pela conveniência de não nos envolvermos com o outro. Nós nos desumanizamos toda vez que tentamos tampar o sol com a peneira. A des-humanização é um movimento corrente e corrosivo que segue tomando conta, primeiro do coração e depois da mente, de modo a cristalizar o sentimento mais belo que o Criador soprou em nós: o Amor.
- Hoje, em meio ao grande desafio que vivemos – especialmente no período de pandemia – o que é ser uma educadora?
A pandemia não alterou o real sentido sobre ser uma educadora ou um educador. A questão sempre foi e é: que educação queremos construir e compartilhar com a geração presente e do porvir?
A pandemia veio rasgar a nossa hipocrisia e desnudar o tamanho da desigualdadenas metrópoles e nos rincões do Brasil e de todo planeta. A pandemia veio nos esfolar a alma de nossa grotesca e imatura incapacidade de conceber o amor mundi, o amor fraterno àqueles com os quais não nos relacionamos tão proximamente. A pandemia que chegou a arrastar consigo mais de 3 mil óbitos em 24 horas, arranhou nossa cara e estampou o negacionismo e a ignorância carmesim contra a ciência, o bom senso, os valores humanos inegociáveis para a promoção da vida humana com dignidade. A pandemia descortinou o abismo político-partidário no país, onde o uso de máscaras, o distanciamento social e a luta por vacinas para todas as pessoas é fronteira minada de rompimentos relacionais e pautas eleitoreiras sem compromissos sólidos com políticas permanentes de vida ao SUS. A pandemia desmascarou a brasa encoberta do flerte com a ditadura, do sadismo doentio que goza com a tortura e a varredura do divergente. A pandemia só desenroscou a tramela dos guetos ideológicos em que vivemos, onde a neutralidade é discurso perverso.
O que é ser uma educadora, um educador em tempos de pandemia? Certamente que é ser gente! É ser e estar tomado de indignação pela cauterização das almas, dos espíritos e das mentes que foram se desumanizando e naturalizando as milhares de vítimas pela Covid19 em toda sua dimensão socioeconômica, bem como as mais diversas e distintas barbáries acometidas contra o ser humano, seja pelo motivo que for, ao longo da história.
Nosso maior desafio como educadores na pandemia e pós-pandemia é educarmos as crianças de hoje e do amanhã para cultivarem a diferença e as liberdades de ser e estar no mundo, com o mundo e com as outras pessoas sendo diferentes como valores humanos inegociáveis.
- Como fazer da diferença uma arma para a inclusão?
Creio que a diferença não é uma arma para a promoção da inclusão. Arma traz um sentido de produção e reprodução de violências. Não somente uma outra sociedade, uma outra educação é possível, mas sim, uma outra educação é, urgentemente, necessária para construirmos uma outra sociedade necessariamente torneada de Humanidade de maneira tal que ela seja capaz de acolher, de abraçar todas as pessoas.
A compreensão da diferença como atributo próprio da espécie humana e a geração e nutrição do amor que reclama o respeito ao próximo, é como uma porta imensa que se abre para acolher a todos no seio da Mãe Terra, onde há espaços e nutrição para todas suas filhas e filhos, para todos os animais, para toda a natureza que vive nessa Casa Comum.
Quando entendemos a magnitude da diferença e do direito às liberdades de ser e de estar no mundo, com o mundo, com as outras pessoas e com todos os seres vivos, quando apreendemos que todas e todos merecem viver com dignidade, trabalho, salário e moradia decentes, com alegrias e apoios em momentos inevitáveis de sofrimento, nós elevamos o estandarte da inclusão.
A diferença, a inclusão e a educação não são armas contra as violências produzidas pela ganância e poder. Elas são o ponto de partida e de chegada, são caminhos e respostas amorosas aos conflitos que barbarizam nosso conviver em sociedade.
Quando a diferença e as liberdades são reconhecidas como valores humanos constituintes dos principais pilares educacionais de um povo, a inclusão acontece. E a inclusão acontece não porque eu incluo o outro pela força impositiva da lei, mas porque eu também me incluo ao outro e tomo para mim esses valores. E quando cada um de nós faz esse movimento, independentemente da existência de leis e políticas, nós transformamos o mundo em um lugar melhor para todas as pessoas viverem; nós abandonamos a hipocrisia social que nos dizima.
Nesse sentido é que construímos uma “inclusão menor” que é a chave e a energia necessária para o enfrentamento do paradigma da distorção que assola a sociedade contemporânea.
Essa Inclusão Menor se desenha no interior do seio da família que educa seu filho para Ser e estar no mundo, com o mundo e com os outros, embebido de amor como ato voluntário, consciente e revolucionário que aprende, desde a tenra idade, a amar a justiça e a equidade social em território de rivalidades. Desenha-se nas escolas e universidades por meio dos métodos alternativos e inovadores que desestabilizam a tradição pelo viver e educar em comunidades de aprendizagem onde as assembleias democráticas são linhas de fuga para o fortalecimento da consciência social, autonomia, emancipação social e desterritorialização dos espaços do mestre explicador que replica o conteudismo fragmentado que molda cabeças bem (in)formadas, mas sem a capacidade e habilidade de conviver com as diferenças na própria diferença. Desenha-se nos ambulatórios da assistência à saúde, onde o biopoder é diluído pela força potente daquele que se ocupa da saúde humana à disposição do bem-estar dos outros, e que no agir menor desequilibra o costume da superioridade e estrutura cultural de poder e, amorosamente, oferece conhecimento e oportunidade de escolha ao que está sob seus cuidados e evoca novo paradigma à classe. Desenha-se na arte por sua capacidade e potência criadora de mobilizar devires e percepções. Desenha-se por meio dos que não (re)forçam os extremismos de poder que encapsulam a democracia, ceifam as liberdades e irrigam o fascismo quer na doutrina religiosa, no sistema político, no sistema filosófico ou na inclinação literária.
Há que se amar as pessoas intensamente para que aprendam, sendo amadas, a também amarem e escolherem o amor ao invés do ódio que promove a repressão, a perseguição, a tirania, a injustiça, a coerção, o exílio e tudo que descompõe nossa humanidade. Porque o resultado da cristalização das mentes à indiferença e desamor, bem como a consequência da naturalização da violência social, é a palpável sangria de um sepulcral processo de des-humanização de seres, a princípio, Filhos do Amor.
Sílvia Ester Orrú é doutora em Educação, professora na Universidade de Brasília e colaboradora na Universidade Federal de Alfenas. Autora do livro: “A inclusão menor e o paradigma da distorção”.
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