Uma Bíblia pode esconder outra

Por: Cássio Murilo Dias da Silva

 

Em 2003, foi lançado o filme brasileiro “Narradores de Javé”, que conta a história de um vilarejo, chamado Javé, ameaçado pela construção de uma barragem. A única maneira de salvar o povoado é provar sua importância histórica. Os moradores decidem contratar Antonio Biá, um fofoqueiro local, para entrevistar os anciãos, a fim de registrar os fatos e, deste modo, evitar a destruição. Mas a tarefa se demonstra extremamente difícil, pois para os mesmos eventos e as mesmas pessoas são dadas três ou quatro versões diferentes, muito marcadas pelas emoções e pelas impressões pessoais. Tal é o caso, por exemplo, do herói fundador da cidade que, além de ter nomes diferentes, em uma das versões tinha papel secundário, pois o protagonismo era de uma mulher, enquanto em outra era um negro chegado da África. Ao final do filme, como era de se esperar, a aldeia foi invadida pelas águas e o povo teve de se retirar, não sem levar consigo o sino da igreja matriz, como sinal de resistência e esperança. Quem conhece a hipótese documentária da formação do Pentateuco não tem dificuldades em identificar episódios bíblicos, como a discussão dos dois irmãos que, baseados em suas fotografias, discutem o direito à herança. Uma clara referência à disputa Israel-Judá (Reino do Norte e Reino do Sul). A já citada retirada com o sino da matriz é a partida para o exílio na Babilônia (não é à toa que Javé é destruído pelas abundantes águas), para onde os deportados levam a Arca da Aliança.

Mas... e o caderno de anotações do escritor contratado? 

Está totalmente vazio, pois ele não soube o que anotar, uma vez que queria escrever um relato verossímil e comprovado.

Felizmente, para nós, os narradores bíblicos viveram em um tempo em que o “histórico” de um relato não dependia da comprovação imparcial dos eventos narrados, e sim da importância de seu significado para o povo e a nação cuja história era contada. E como os mesmos personagens e os mesmos acontecimentos podem ter diferentes facetas e provocar diferentes reações, os narradores bíblicos optaram por manter lado a lado lembranças e opiniões díspares e até discordantes.

Estas discrepâncias e incongruências são o assunto do livro Uma Bíblia pode esconder outra, dos renomados pesquisadores Thomas Römer e Frédéric Boyer. Como eles afirmam na introdução, o livro nasceu “de uma conversa tida ao longo de vários meses” e, diferente de uma obra acadêmica, repleta de notas e referências, o livro tem mesmo um estilo mais informal, sem renunciar ao rigor e à abordagem crítica.

Embora o título se refira à Bíblia toda, os autores falam principalmente de dois blocos literários: o Pentateuco (capítulos 1-6) e a Obra Histórica Deuteronomista (capítulos 7-8). Os autores não estão preocupados em discutir e resolver “o conflito dos relatos”. Este é, aliás, o subtítulo do livro. De fato, os autores partem das divergências para demonstrar que não há uma versão harmônica e linear dos acontecimentos e das pessoas.

No capítulo 1, “As cicatrizes da criação”, os autores percorrem os onze primeiros capítulos do Gênesis e fazem notar não apenas as repetições de histórias, que entre si são discrepantes, mas também incongruências num mesmo relato.

O capítulo 2 descreve “A fabricação plural de Abraão” e demonstra que este patriarca não tem, no relato bíblico, um retrato monolítico e plano. Também os acontecimentos são narrados com variações e lacunas, incongruências e até falta de lógica. Igualmente, as diferentes denominações da divindade indicam que a história de Abraão é uma colcha de retalhos propositadamente escolhidos e costurados.

O brevíssimo capítulo 3, “O jogo Abraão-Moisés” esboça um paralelo entre estes dois personagens e tenta responder quem suplanta quem.

Em “As metamorfoses de Jacó” (capítulo 4), os autores demonstram que a troca de nomes, de Jacó para Israel, não foi a única transformação aplicada a este personagem, para transformá-lo, por meio de vínculos genealógicos e geográficos, em um dos patriarcas do Reino do Norte e do Reino do Sul.

O título do capítulo 5, “O romance de José, herói da diáspora” pode ser enganoso. Aqui, “romance” tem mais o sentido de “novela” e, de fato, este é o gênero literário do longo relato sobre o filho de Jacó que se tornou ministro no Egito. Como toda novela, é uma história recheada de personagens, situações e reviravoltas. Ela foi habilmente construída no período pós-exílico para responder a situações presentes também em textos dos períodos persa e helenista, tal como o antijudaísmo, presente também no livro de Ester.

Também o título do capítulo 6, “O êxodo, uma epopeia paradoxal”, exige cuidado. Não se trata da epopeia de um povo, mas de uma pessoa: Moisés. Toda a vida deste personagem é recheada com elementos míticos: seu nascimento e sua sobrevivência “milagrosos” (em estreito paralelo com a história de Sargão II e Ciro), sua caminhada pessoal também com algumas reviravoltas e desenvolvimento psicológico, seu papel como legislador e guia, e sua morte. O personagem Moisés sintetiza – com as qualidades e os defeitos – a caminhada do povo de Israel.

No sétimo capítulo, os autores avançam do Pentateuco para a Obra Histórica (ou melhor, Historiográfica) Deuteronomista. Isso marca também uma mudança de perspectiva: a terra, outrora Prometida, agora deve ser conquistada, como o título do capítulo anuncia: “A terra, do dom à conquista”. O que temos no relato bíblico é a costura de duas mitologias: uma, mais ligada à genealogia (no Gênesis), e outra, mais ligada à supremacia de um povo sobre outros (em Josué).

O último capítulo, “O obstáculo da realeza e as adequações do cânon”, analisa a colagem de dois corpos literários: de um lado, Josué, Juízes, Samuel e Reis; de outro, os livros dos profetas escritores (Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze “menores”). Além das diferenças entre os livros no interior de cada corpo literário, também os dois conjuntos têm diferenças entre si: o papel de Moisés, a importância da Lei, Davi e a restauração (ou não) da sua dinastia, o messias, o papel dos profetas. As divergências de opiniões abrangem diversos aspectos históricos e teológicos.

A conclusão arremata o livro e demonstra que o encaixe imperfeito das peças não é incompetência do redator final, mas seu método de trabalho. Para quem busca na Bíblia uma narrativa linear, lógica e harmônica, este expediente redacional é causa de frustração. Mas só pode ser compreendido à luz das diferenças culturais entre o Ocidente moderno e o Antigo Oriente Próximo, principalmente no que se refere aos conceitos de verdade e de história. Mas entra em jogo também uma capital diferença entre duas religiões: o cristianismo e o judaísmo. Enquanto o cristianismo (particularmente em sua versão católica) pode ser qualificado como uma “religião de dogmas”, com verdades (inquestionáveis) formuladas de modo sistemático e coerente, o judaísmo, diferentemente, é uma “religião de discussão”: a mesma história, o mesmo evento e até as mesmas palavras podem ter múltiplas interpretações verdadeiras. Isto se vê claramente em obras como o Talmude, que registra as explicações divergentes e contrastantes dos rabinos, sem fazer um juízo sobre qual delas é a verdadeira, porque todas elas o são.

A maioria dos leitores ocidentais da Bíblia tem a necessidade mental de ler uma história coerente e bem articulada e, por isso, estão pouco habituados a identificar “o conflito dos relatos” bíblicos. Não é à toa que, no Ocidente, a leitura fundamentalista da Bíblia tem crescido velozmente nas últimas décadas. Neste sentido, o livro de Römer e Boyer é uma excelente resposta (ou melhor, provocação). Se “uma Bíblia pode esconder outra”, é necessário que quem a lê esteja atento a aceitar mais de uma opinião sobre o mesmo fato. Caso não o faça, estará sempre escolhendo a Bíblia que mais lhe convém e, por conseguinte, descartando (ou, ao menos, desconsiderando) a outra.

E isso leva a uma pergunta bastante prática: Qual Bíblia você está lendo?

 


Cássio Murilo Dias da Silva é doutor em Ciências Bíblicas.