Tratado sobre o fundamento da moral
Por Renato Nunes Bittencourt
Schopenhauer é, sem dúvida, um dos filósofos mais originais em nossa tradição ocidental acerca da análise sobre as bases motivacionais da ação moral do ser humano. Segunda parte de Os dois problemas fundamentais da Ética, em Tratado sobre o fundamento da moral, Schopenhauer apresenta o cerne de sua doutrina moral, calcada para além de qualquer perspectiva pautada na Eudaimonia e para além de qualquer parâmetro normativo ou deontológico, tal como Kant proporia na sua Crítica da Razão Prática mediante o formalismo do dever do imperativo categórico e a inerente negação de qualquer inclinação do agente moral em relação ao paciente.
Schopenhauer, com efeito, no decorrer de Tratado sobre o fundamento da moral, presta severas contas com o legado kantiano, rechaçando ponto por ponto esse edifício ético considerado artificial e obtuso. Para Kant, uma ação somente apresenta valor moral se é realizada sem interesse. Ora, Schopenhauer considera que, ao fazer o bem ao sofrente, o agente quer salvar essa pessoa desafortunada de sua miserabilidade, e a recompensa de seu ato é simplesmente a restauração do bem-estar dessa pessoa. Faz-se o bem pelo bem do outro e o regozijo por isso não é nenhum desvio moral que invalida o valor da ação ética, mas antes a prova de uma empatia entre ambos.
Para Schopenhauer, o fundamento da moral é metafísico, encontra-se para além das aparências. O mundo fenomênico é regido pela multiplicidade e pelo embate das individualidades, que, no fundo, são manifestações da mesma essência originária, a Vontade. A tradição racionalista da filosofia ocidental se afastou da sabedoria perene, seja a hindu, a budista ou mesmo a cristã originária, e assim desconectou-se da matriz ética que perpassa todos os povos e culturas, a compaixão. Compaixão não é apenas sofrer-com o padecente, mas vivenciar intimamente com o outro todos os seus estados de ânimo, como se ocorresse a fusão entre dois indivíduos, rompendo-se assim o princípio de individuação que separa as pessoas conforme a perspectiva ignorante do senso comum. Tu és isso, é um dos motes da compaixão, poderíamos ainda dizer, “Eu sou Tu”. Nessas condições, a compaixão suspende qualquer barreira entre as pessoas, eu consigo me reconhecer plenamente no outro e, de maneira imediata, renuncio ao ato violento contra ela. A compaixão não se ensina, ela é um acontecimento misterioso que a racionalidade teórica não é capaz de abarcar. Schopenhauer postula que, da compaixão, matriz de toda ação ética, derivam a justiça e a caridade. A justiça é a virtude que me impede de fazer o mal a alguém, a caridade é a virtude que me impulsiona a fazer o bem ao próximo.
Alguns detalhes bastante importantes potencializam ainda mais a dignidade filosófica da obra de Schopenhauer. A sua condenação contra a escravidão, que não é apenas uma injustiça contra o ser humano, mas uma ação cruel contra a sua pessoa, assim como a compreensão de que nós e os animais irracionais somos oriundos de uma mesma essência, a Vontade, daí também a necessidade de se respeitar e tratá-los com amor e cuidado. O respeito aos animais não é sinal de fraqueza de ânimo, mas o reconhecimento da unidade ontológica que une todos os viventes. Veja-se aí o caráter extemporâneo da obra de Schopenhauer.
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Renato Nunes Bittencourt é Doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia pela UFRJ e Professor do Curso de Administração da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da UFRJ. Especialista na obra de Espinosa, Marx, Schopenhauer, Nietzsche e Byung-Chul Han. Publica constantemente textos sobre a relação entre sociedade do cansaço, ideologia gerencial e administração, assim como alternativas viáveis para a superação desse modelo de vida.
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