Tratado sobre a liberdade da vontade

Por: Renato Nunes Bittencourt 

 

Schopenhauer é um pensador cujo sistema filosófico se desenvolveu em um grande bloco de ideias desde sua juventude e todos os seus escritos posteriores são esclarecimentos, aprofundamentos e aditamentos ao seu tema primordial, a prevalência da Vontade, essência constituinte de todas as coisas, como o fundamento ontológico da realidade. 

Em Tratado sobre a Liberdade da Vontade (originalmente uma dissertação de concurso apresentada em 1839 à Sociedade Norueguesa de Ciências de Drontheim e por esta premiada, tornando-se posteriormente a primeira parte de Os dois problemas fundamentais da Ética), Schopenhauer disserta sobre o seguinte mote que norteia a obra: “A liberdade da vontade humana pode ser provada a partir da autoconsciência?”

Para além de toda teleologia, que sempre se enraíza em uma perspectiva metafísica transcendente ao mundo, Schopenhauer coloca por terra todo postulado acerca da existência de um pretenso livre-arbítrio que regula a vida humana, e assim a moralidade tradicional-institucional revela-se calcada em um terreno. Não é a autonomia da razão de um sujeito puro, mas a força determinante do querer, que promove a ação humana sem qualquer cerceamento moral prévio. O ser humano, não importa sob qual condição histórica, age conforme estímulos dos quais ele usualmente desconhece a matriz, mas acredita que sua ação é determinada livremente por sua própria capacidade de escolha. Sequer sabemos o que é o “eu” que acompanha todas as nossas pretensas decisões e intelecções. A vida humana ordinária fia-se apenas nas aparências cambiantes das coisas e não consegue compreender a essência uma que é a Vontade, ela sim livre de toda determinação empírica. Uma pedra atirada ao alto, caso dotada de consciência, acreditaria que tal movimento ocorre por sua própria deliberação e esforço, assim também é a vida humana, flutuante entre estímulos contraditórios, age por necessidade e não por liberdade. 

No âmbito da metafísica schopenhaueriana, nossa inteligência e, por conseguinte, o princípio de razão suficiente abarcam apenas os fenômenos e não a coisa-em-si, a Vontade, indivisa, inapreensível pelo entendimento humano. Conforme Schopenhauer insiste constantemente em sua obra, a virtude não pode ser ensinada. Logo, a moral não é capaz de aprimorar o gênero humano e conduzi-lo para um situação ótima no porvir, em uma progressão contínua de regeneração das nossas inclinações rumo ao que seria uma postulada santidade de caráter. 

Eis aqui uma das questões mais insólitas apresentadas por Schopenhauer: já nascemos com as ditas disposições morais inatas, então não é possível que a conduta ética do homem seja regulada de forma prescritiva mediante adequações ao dever. A função da moral é apenas evitar a guerra de todos contra todos, controlando os nossos ímpetos mais violentos que prejudicam a estabilidade social.  

Para Schopenhauer, toda as formas de vida são emanações da Vontade, fragmentadas pelas categorias do espaço e do tempo, e assim fazem parte de uma grande unidade cosmológica, desprovida, todavia, de providencialismo divino. Por conseguinte, a única transcendência possível ao ser humano reside em compreender essa unicidade primordial e se reconhecer como parte de um grande todo, aparentemente diverso, mas ontologicamente indistinto. Nesse quesito, o Hinduísmo, o Budismo e o Cristianismo Originário, apesar das suas diferenças discursivas, apresentariam em suas cosmovisões essa unidade primordial. 

 

 

Renato Nunes Bittencourt é doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia pela UFRJ e Professor do Curso de Administração da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis da UFRJ.  Especialista na obra de Espinosa, Marx, Schopenhauer, Nietzsche e Byung-Chul Han. Publica constantemente textos sobre a relação entre sociedade do cansaço, ideologia gerencial e administração, assim como alternativas viáveis para a superação desse modelo de vida.