O Pão Vivo

Por: Nilson Perissé

O Pão Vivo

Pode-se dizer que há uma teologia da Eucaristia em Thomas Merton?

A obra “O Pão Vivo” dá a resposta. Ainda que não tenha sido um tema sobre o qual Merton tenha se ocupado tão longamente quanto o fez com a oração contemplativa, neste precioso livro ele não apenas condensa alguns ensinos da doutrina da Igreja como tece suas próprias meditações e intuições sobre a Eucaristia e seu poder de transformação do coração humano.

Experiências emblemáticas

Capturar alguns fragmentos da trajetória de Merton até a publicação dessa obra pode lançar luzes sobre a importância da Eucaristia em sua espiritualidade. De imediato, vale trazer aqui um recorte de sua primeira experiência numa missa. Ele ainda não era católico, tinha 23 anos e foi de súbito tomado por uma voz interior que ecoava em sua mente: “Vai à missa! Vai assistir à missa!”. Dirigindo-se à Igreja Corpus Christi, não apenas participou de boa parte da celebração, como surpreendeu-se pelo fato de encontrar em seu interior pessoas de todas as idades, homens, mulheres e crianças pertencentes a diferentes classes sociais, todos envolvidos em laços de união tecidos por uma fé comum. A surpresa da descoberta de “tanta gente normal” reunida a partir de uma mesma consciência sobre Deus, bem como a homilia simples, mas profunda que ouviu, fizeram com que o jovem Merton saísse do templo como se caminhasse num novo mundo até então desconhecido, um mundo mais leve, mais vibrante e feliz. Curiosamente, saiu da igreja antes da celebração do mistério eucarístico, pois intuiu que não tinha ainda elementos de compreensão que o facultassem honrar aquele momento como deveria.

Dois anos se passaram e muitas outras missas o levaram a uma experiência com a eucaristia que teve o alcance de uma epifania. Em 1940, aos 25 anos de idade, seguiu para Cuba com dois objetivos: descansar após uma cirurgia de apendicite e colocar seu desejo de ser sacerdote católico nas mãos da padroeira de Cuba, Nossa Senhora da Caridade do Cobre. Em Havana, na celebração de uma missa, algo surpreendente aconteceu. Quando o sacerdote ergueu a hóstia e o cálice no momento da Consagração, as vozes das crianças que entoavam um canto preencheram todo o ambiente. De súbito, ele sentiu uma indefinível sensação de paraíso em vida, como que tivesse sido suspenso da terra e atravessado por um raio, o que o fez relatar: “o céu bem diante de mim! O céu. O céu!”

A experiência transcendeu sua razão, e ele conseguiu sentir naquela Consagração o Cristo tornado presente: “Era como se eu, de modo inesperado me clareasse todo, ao ficar quase cego ante a manifestação da presença de Deus”.

A experiência de Cuba jamais foi esquecida. Em 1949, já ordenado padre, ele dedicou sua primeira missa à Nossa Senhora da Caridade do Cobre e, certamente com o coração emocionado, pôde ser o portador da Comunhão para Dan Walsh, Bob Lax, Ed Rice e Bob Giroux, amigos fiéis de sua trajetória antes da clausura, e que foram prestigiá-lo em sua cerimônia de ordenação. Já nessa fase de vida, Merton é alguém que aprende a ver, encontrar e se unir ao Senhor no Sacramento, o que o faz escrever em seu diário, em maio de 1949, que considerava suas primeiras três missas como suas “três primeiras graças”.

Entretanto, aos 40 anos, em 1955, um ano antes da publicação de “O Pão Vivo” – e nos meses em que provavelmente desenvolveu e finalizou a escrita dessa obra -, Merton é um homem em crise. O entusiasmo com que descreveu seus primeiros anos como religioso em Gethsêmani dava lugar a uma visão crítica e não isenta de angústia. Ele se arrependia por ter passado uma imagem romantizada da vida em clausura em sua obra “A Montanha dos Sete Patamares”, e ao mesmo tempo se ressentia de que seus leitores esperassem dele que se mantivesse congelado na imagem que passara de si, como se não pudesse avançar para outras camadas de compreensão e vivência da realidade. Estava incomodado com o rígido controle ao qual eram submetidos os monges, queixava-se da pouca privacidade que tinha e dos escassos momentos de silêncio em sua Ordem. Aspirava por mais liberdade e mais solidão. Nesse ano, pensa em sair da Ordem Cisterciense e entrar para a Ordem dos Camaldulenses, comunidade de monges beneditinos, de natureza contemplativa e com vida em clausura. Chegou a enviar cartas buscando viabilizar sua mudança, porém sua Ordem considerou relevante que ele permanecesse onde estava. As idas e vindas desses esforços levaram-no a um alto nível de exaustão emocional e ansiedade, o que preocupou seus superiores. Alguns esforços são empreendidos para proporcionar a ele momentos de solidão e isolamento. Também é apresentada a ele a oportunidade para atuar como mestre dos noviços, o que vai ao encontro de seus interesses no aprofundamento de suas leituras e no ofício do ensino.

Uma demanda que veio de fora: escrever sobre a Eucaristia

Nesse contexto de turbulência pessoal, integrantes do movimento da Adoração Diária e Perpétua do Santíssimo Sacramento da Eucaristia entre os Sacerdotes do Clero Secular (congregação voltada para a adoração sem interrupção da Eucaristia), com sede principal em Roma, fazem chegar a Merton um pedido para que ele escreva uma obra sobre a Eucaristia, mistério central do cristianismo. Podemos pensar que se tratou de uma demanda providencial, pois exigiu que o monge se abstraísse da crise institucional com a qual se debatia para colocar seu pensamento e sua emoção em algo que se sobrepunha à rigorosa disciplina imposta por sua Ordem e a quaisquer arbitrariedades clericais: o Cristo Eucarístico.

Lançado originalmente em março de 1956, “O Pão Vivo”, embora escrito sob demanda, parece ter sido a oportunidade para Merton articular celebração eucarística com uma preocupação que sempre permeou seu pensamento, que consiste na busca da comunhão/união da pessoa com Deus e segue até o estabelecimento dessa mesma relação de proximidade para com o próximo.

União como eixo central da Eucaristia e do pensamento mertoniano

União é um tema caro a Merton. Em outra de suas obras, “O Homem Novo”, ele defende que o ser humano foi criado para viver em conexão com Deus e com a criação, numa respiração uníssona entre Criador e criaturas. Na sua perspectiva, ninguém foi criado para viver apartado da humanidade ou imerso no individualismo (“Homem Algum é uma Ilha” é o título de outro livro seu), mas em união, numa lógica de humanidade caracterizada pela solidariedade e pelo serviço de uns para com os outros, em generosas relações de complementariedade. Entretanto, na contramão dessa premissa – argumenta Merton -, a autossuficiência e a competição têm sido valores sociais praticados desde o mítico Adão, o que faz com que as relações humanas primem pela concorrência e por posturas impositivas e excludentes. A emergência de uma sociedade de massas corrompeu o senso de unidade e uma poderosa fantasia de separação aliena a pessoa em sua relação com Deus, com o próximo e com a natureza. Disso resultam fenômenos contemporâneos como a negação de Deus, a opressão (ou o medo) do outro, guerras e variadas sementes de destruição.

O mundo está adoecido, pensa Merton, o que o leva a ponderar:

“[…] sabemos, nas íntimas profundezas de nosso ser, que nossa vida deve recobrar uma certa medida de unidade, estabilidade e sentido. Sentimos, instintivamente, que essas coisas só nos podem vir da nossa união com Deus e da nossa união com os outros” (O Pão Vivo, p. 26).

Mas como avançar na direção dessa complexa união?

Merton propõe algo muito mais profundo e íntimo do que o simples estabelecimento de uma disciplina que envolva a frequência a uma igreja, a adesão a crenças ou conformidade com ritos e costumes. “Nada contribui tanto para destruir nossa estima para com o Santíssimo Sacramento como a rotina”, diz ele. “Celebrar a missa automaticamente, aproximar-se dos sacramentos de maneira descuidada e distraída, é considerar os grandes dons e mistérios de Deus como se fosse objetos e fatos semelhantes a todas as coisas materiais que fazem parte de nossa vida” (p. 31). Numa direção oposta a isso, ele realça a face da Igreja como Corpo Místico de Cristo, e, como tal, o desafio que ela nos impõe para que façamos a união mística com o Senhor e com os irmãos. A igreja em sua dimensão de templo e local de acolhida tem seu papel de encarnar um espaço para que aconteça a assembleia (ecclesia), mas é a igreja como Corpo Místico que todos devem visar, vivendo na prática a argumentação paulina de que o corpo se faz na união efetiva de seus vários membros.

Merton aposta suas fichas na Eucaristia como recurso de excelência para a restauração da união das pessoas com Deus e entre elas mesmas:

“a Eucaristia é o grande meio planejado por Deus para congregar e unir a humanidade dispersa pelo pecado original e pelo pecado atual. A Eucaristia é o sacramento da unidade” (O Pão Vivo, p. 168).

Para ele, “a participação ativa na missa, a recepção inteligente e humilde da Sagrada Eucaristia, com um coração puro e o desejo de uma caridade perfeita – são esses os grandes remédios contra o ressentimento e a desunião semeados pelo materialismo” (p. 29).

Sacrum Convivium

Aproveitando-se da parábola do banquete nupcial (Mt 22, 1-14), Merton observa que o Senhor quer a todos num banquete, festejando o prazer de se estar numa reunião de amigos, comungando de um mesmo laço, uma mesma união. Enfatiza, porém, que melhor que as palavras banquete ou festa é a palavra latina convivium, que evoca o mistério do partilhar de uma vida e de interesses comuns. Nesse sentido, segundo ele, a Eucaristia é um convivium, um banquete sagrado, festa em que a Igreja se alegra em torno da mesa comum com os apóstolos, os santos e os fiéis:

“A comunhão é um sacrum convivium. É um banquete em que os fiéis não só gozam, pessoalmente, dos benefícios espirituais e das satisfações da união com Cristo Eucarístico, mas tomam igualmente consciência da sua comum participação na vida divina” (O Pão Vivo, p. 146-147).

Christine M. Bochen, estudiosa de Merton, ao tecer considerações sobre “O Pão Vivo”, chama a atenção para o fato de que, embora o texto apresente uma abordagem devocional e até certo ponto tradicional sobre a Eucaristia, ao mesmo tempo reflete o crescimento da consciência de Merton sobre a centralidade da contemplação, compaixão e senso de comunidade como pilares da vida cristã. De fato, é possível encontrar em seu texto frases como: “nossa vida de oração e adoração eucarística é, na realidade, o começo daquela contemplação de Deus, em Cristo, que será toda a nossa vida quando entrarmos na sua Glória” (p. 52). Isso dá um caráter “mertoniano” à obra, já que insere a Eucaristia no contexto da experiência contemplativa que nos faz experienciar Deus e, por consequência, nos sentir mais compromissados com a Criação à qual estamos integrados, Criação essa representada pelo próximo e tudo o mais criado. 

Essa visão de contemplação e compromisso com a vida é também percebida por outro estudioso de Merton, Gregory Hillis, que lembra do célebre episódio que o monge trapista viveu entre as ruas Fourth e Walnut, em Louisville, em que este foi tomado por um senso de amor e união incomuns por todos os estranhos que passavam por aquele lugar. Nessa experiência de caráter místico, Merton viu a beleza de todos os corações e entendeu que, se a humanidade tomasse conhecimento da chama divina que traz dentro de si, não haveria mais guerra, ódio ou ambição. Hillis observa que Merton já vinha escrevendo sobre a proposta e significado da Eucaristia há anos, mas talvez só mesmo nesse episódio tenha conseguido experimentar profundamente aquilo que já sabia teologicamente. Naquele momento, amou incondicionalmente as pessoas e talvez tenha vivido efetivamente aquilo a que se propõe a Eucaristia como expressão mística do amor de Deus: uma íntima e profunda comunhão com o próximo.

“O Pão Vivo” consiste numa obra acessível, mas profunda, perpassada por uma rigorosa pesquisa no Magistério da Igreja, mas cheia de intuições e reflexões originais de seu autor.  Obra imprescindível para que tenhamos contato com os aspectos místicos e teológicos do sacramento da Eucaristia através dos olhos de um padre e místico católico. Sua leitura tem o condão de aumentar nossa sensibilidade para com a missa e entrar na experiência mística da Consagração de maneira mais profunda. Embora o contexto de sua escrita, no turbulento ano de 1955, não tenha sido o melhor momento pessoal para Merton, ainda assim há leitores que já disseram que sua compreensão e apreciação da eucaristia, após a leitura dessa obra, mudou para sempre.

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Nilson Perissé é formado em Ciências Religiosas pelo Instituto Superior de Ciências Religiosas do Rio de Janeiro e atua como catequista leigo no Santuário Basílica São Sebastião – Frades Capuchinhos. É integrante da Associação Thomas Merton e autor do livro “Thomas Merton e a Teologia do Verdadeiro Eu”, que será publicado em breve pela Editora Vozes.