O mundo das imagens - Nise da Silveira
Por: Vera Macedo
Nise da Silveira é considerada uma psiquiatra humanista, obstinada pelo seu trabalho revolucionário voltado para “os inumeráveis estados do ser”, como afirmava o filósofo e dramaturgo francês Antonin Artaud. Após sua aposentadoria compulsória, em 1975, Nise foi tomada por uma força criativa que a impulsionou a registrar seus longos anos de estudos, pesquisas e experimentos empíricos, iniciados no Setor de Terapêutica Ocupacional e de Reabilitação – STOR (1946) e, posteriormente, no Museu de Imagens do Inconsciente – MII, inaugurado em 1952.
Nesse período de profunda reflexão e elaboração de sua obra, o que chama atenção é que foi através de um sonho revelador, que muito a mobilizou, que foram ativados potenciais de conhecimentos intuitivos. Esse sonho foi determinante para uma mudança de atitude em Nise, que se dedicou à esplêndida tarefa de escrever dois livros excepcionais, considerados grandes referências para aqueles que pretendem se aprofundar nos estudos das séries das imagens arquetípicas a partir da abordagem junguiana. Ao contemplar as imagens oníricas do seu sonho revelador, que manifestaram símbolos arquetípicos de uma tigresa, em uma caverna, parindo dois filhotes, Nise foi atraída pela mensagem numinosa desse sonho místico. Ela entendeu que havia chegado a hora de expressar, com liberdade e originalidade, suas ideias e seus fundamentos teóricos aplicados a sua práxis com esquizofrênicos. Com autodeterminação, afirmou: “É hora de fazer o livro!” Assim, Nise brindou seus leitores com duas obras clássicas e científicas que são Imagens do inconsciente (1981) e O mundo das imagens (1992).
O mundo das imagens é um marco da literatura vanguardista nos campos da psiquiatria e da psicologia clínica contemporânea. Nise, com sua arguta inteligência e sensibilidade, dirigiu, no primeiro capítulo Crise e tentativas de mutação na psiquiatria atual, sua forte crítica e combate aos modelos psiquiátricos tradicionais e suas bases cartesianas, que fazem uso de tratamentos extremamente agressivos como os eletrochoques, como os excessos de psicotrópicos prescritos que aprisionam o indivíduo a verdadeiras camisas de força químicas, e outras modalidades de práticas que provocam profundas regressões psicológicas e fisiológicas nos doentes submetidos a esses tipos de procedimentos. Já em 1945, em Paris, Artaud escreveu uma carta a seu psiquiatra denunciando os horrores dessas intervenções desumanas que, ainda hoje, continuam sendo administradas em crianças, jovens e adultos:
“O eletrochoque me desespera, apaga a minha memória, entorpece meu pensamento e meu coração, faz de mim um ausente que se sabe ausente e se vê durante semanas em busca de seu ser, como um morto ao lado de um vivo que não é mais ele, que exige sua volta e no qual ele não pode mais entrar. Na última série, fiquei durante os meses de agosto e setembro na impossibilidade absoluta de trabalhar, de pensar e de me sentir ser ...” ¹
O método terapêutico de tratamento não agressivo adotado por Nise foi denominado “emoção de lidar”, expressão utilizada por um cliente que sugere que a emoção é estimulada na manipulação dos materiais disponíveis nos ateliês. Nesse espaço terapêutico, cria-se um ambiente cordial, respeitoso e ético, livre de quaisquer tipos de coações, através de atividades lúdicas que proporcionam satisfação e encorajam as relações de sociabilidade dos doentes levando-se em consideração suas possibilidades adaptativas. Todas as atividades expressivas não verbais e verbais têm qualidades terapêuticas, pois possibilitam que emoções caóticas tomem forma e sejam despotencializadas de suas fortes cargas afetivas. Além disso, promovem o surgimento das forças autocurativas da psique estimulando as funções de criatividade. Essas imagens pictóricas que parecem ser indecifráveis e sem significados aparentemente se exprimem por meio de linguagem simbólica e refletem, como um espelho, o acesso ao mundo hermético do doente que é de difícil acesso. O estudo e a pesquisa das séries de imagens do inconsciente produzidas, espontaneamente, nos diversos ateliês pelos doentes são arquivadas, catalogadas, analisadas e interpretadas nos fundamentos da teoria psicológica de C. G. Jung.
Nos capítulos 2,3 e 4, Nise apresenta Estudos comparativos entre a demência orgânica e a demência esquizofrênica, além de dois estudos de casos clínicos, inéditos, de sua práxis: Isaac: paixão e morte de um homem e Emygdio: um caminho para o infinito, introduzindo os leitores na complexa tarefa da análise e interpretação das séries de imagens arquetípicas consideradas como autorretratos da situação interna da psique.
O mundo das imagens, capítulo 5, é um breve estudo histórico sobre os diferentes pontos de vista de pensadores como Kandinsky, Freud, Jung, Pauli, Kepler, Bachelar, Artaud, Prinzhorn, Volmat, Navratil, Adamson e dos representantes da Arte Bruta, como Dubuffet, e da Arteterapia, como Margareth Naumburg. Esses pensadores dão ênfase à configuração das imagens dos sonhos, das fantasias, das produções plásticas a métodos de investigações distintos. Nise, decisivamente foi afetada pela extraordinária obra de Jung. Reconheceu a teoria analítica como sendo de grande relevância para o aprofundamento e compreensão dos produtos da função imaginativa da psique. A psicologia junguiana considera as imagens inconscientes como produtos essenciais da psique sem quaisquer disfarces e distingue dois tipos de imagens, as de caráter pessoal, que manifestam os conteúdos do inconsciente pessoal, e as de natureza impessoal, pertencentes à estrutura básica do inconsciente coletivo. Essas disposições primordiais inatas são denominadas de imagens arquetípicas, possuem caráter mitológico e são fontes de toda imaginação criativa.
Rituais: imagem e ação, capítulo 6, Simbolismo do gato, capítulo 7, e A cruz e seu simbolismo, capítulos 8, são estudos relevantes realizados por Nise sobre as diversas práticas dos povos originários, como por exemplo, a dança, os jogos, as religiões, costumes e hábitos humanos que são produtos psíquicos de épocas remotas que não se extinguiram e que ainda permanecem na contemporaneidade. Por exemplo, as imagens, espontâneas, produzidas por Otávio Ignácio e Carlos Pertuis, no ateliê de pintura do Museu de imagens do Inconsciente, são evidências irrefutáveis da presença de inúmeras imagens arquetípicas de rituais da Grande Mãe e de Sacrifícios cujo simbolismo é inesgotável. A psiquiatria tradicional despreza esse material por considerar as imagens como patológicas e por não possuir em seu currículo de formação o estudo comparativo da mitologia, das histórias das religiões e das civilizações, da antropologia cultural e da história da arte como Jung e Nise se debruçaram nesses conhecimentos com o intuito de entender o complexo processo psíquico dos esquizofrênicos.
O mundo das imagens finaliza com o tema fascinante das Metamorfoses e transformações, no capítulo 9, em que Nise ilustra dois processos de metamorfoses psíquicas através das séries de imagens criativas produzidas por Adelina e Carlos Pertuis. Nas séries de imagens pintadas por esses doentes é possível observar os diversos reinos: vegetal, mineral, animal, humano e cósmico, manifestando o dinamismo que ocorre no fenômeno da metamorfose. Essas imagens arcaicas expressam diversos motivos que correspondem aos contos de fada e às mitologias, constituindo-se em muitos desafios para os estudiosos e pesquisadores das imagens do inconsciente. O capítulo 10, C. G. Jung na vanguarda de nosso tempo, é um estudo de Nise com a contribuição de Luiz Carlos Mello, que apresenta os dois gênios Freud e Jung criadores de novas ciências modernas a Psicanálise e a Psicologia Profunda ou Complexa de Jung. Embora suas concepções sejam divergentes, ambos enfrentaram preconceitos relacionados as suas descobertas, consideradas incompatíveis com os fundamentos filosóficos da ciência de suas épocas. Para Nise, as descobertas de Jung estão tão à frente de nosso tempo que só gradualmente serão disseminadas nos diferentes campos do saber.
AVE NISE!!!!!!
¹ Artaud, A.- Oeuvres Complètes XI. Paris:Gallimard,1974, p.13.
Vera Macedo é Diretora Técnica da Casa das Palmeiras - Nise da Silveira. Analista didata pelo Instituto Junguiano do Rio de Janeiro- IJRJ, membro da Associação Junguiana do Brasil – AJB e membro da International Association for Analytical Psychology – IAAP – Zurique. Professora e Supervisora de Psicologia Analítica. Dirige o Grupo de Estudos Junguiano Caralâmpia. Graduada em Psicologia Clínica pela UFRJ. É autora do livro: Sonhos, conexões com seu oráculo interior e de artigos: A importante contribuição da obra de Nise da Silveira para a psicologia analítica de Jung, Casa das Palmeiras - Uma nova abordagem terapêutica em psiquiatria e Nise: Sophia.
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