O Eneagrama do Mulá Nasrudin
Por: Luis Gonzaga Fragoso (Tradutor, em parceria com Rodrigo Usba, do livro de David Barba).
“Rir de si mesmo mata o ego e você se torna mais transparente, mais leve, quando se move no mundo. E se você é capaz de rir de si mesmo, então o riso dos outros com relação a você não o perturbará”.
– Osho
Em meio a uma enxurrada de publicações sobre o Eneagrama, chega ao leitor brasileiro um livro que traz uma abordagem inédita. Em O Eneagrama do Mulá Nasrudin, um tema denso é tratado com linguagem acessível, sem academicismos e permeado pelo humor de Nasrudin, sábio da tradição sufi. A capacidade de rir do ridículo da condição humana – e sobretudo de nosso inflado ego – é uma arte. David Barba, com o auxílio luxuoso de Nasrudin, nos aproxima desta arte, ao mesmo tempo que nos guia por um dos mais poderosos mapas de autoconhecimento.
Grande parte dos livros e sites sobre o Eneagrama aborda este mapa dando uma ênfase excessiva ao aspecto luminoso e virtuoso de cada um dos nove eneatipos – personagens que criamos por volta dos dois anos de idade, como estratégias de adaptação a um mundo hostil –, relegando a um segundo plano as suas sombras. Com isso, ignora-se um dos princípios básicos do desenvolvimento espiritual: somente a partir do trabalho com as dores da infância e do contato com nossas feridas que se pode almejar a ampliação da consciência.
Caso o leitor não tenha familiaridade com o Eneagrama e decida buscar informações na internet, encontrará uma infinidade de sites, vários dos quais contêm um teste para que você descubra o seu eneatipo. Em meados dos anos 1970, teve início nos Estados Unidos um processo de popularização do Eneagrama, iniciado por alguns dos primeiros alunos de Claudio Naranjo (um dos grandes mestres de nosso tempo, cuja extensa biografia não poderia ser resumida neste espaço), que romperam um pacto inicial de não divulgarem o conteúdo de seus cursos, ministrados na fase inicial do desenvolvimento da Psicologia dos Eneatipos – uma contribuição pioneira e essencial para a compreensão do Eneagrama. A partir de então, seguiu-se uma avalanche de cursos e publicações sobre o tema, num processo de crescente diluição do conhecimento disseminado por Naranjo – processo descrito em detalhes na longa conversa entre David Barba e Claudio Naranjo que é inserida no livro. Uma clara evidência do “desvio de rota” promovido e incentivado por pseudomestres do Eneagrama é o atual emprego desta ferramenta nos departamentos de RH de algumas empresas, para a seleção de novos funcionários, visando aumentar sua produtividade e eficiência. Como resultado desta deturpação (em que nos é servida “a sopa da sopa da sopa”, um caldo ralo da sopa original, conforme o conto de Nasrudin que abre o livro – metáfora perfeita para a diluição do conhecimento original), um mapa para a ampliação da consciência tem sido usado com fins utilitários.
Uma prova deste utilitarismo são os eufemismos a que recorrem muitos autores e “facilitadores” de cursos para se referir aos eneatipos. Tomemos como exemplo os adjetivos atribuídos a quatro eneatipos por dois autores amplamente divulgados em nosso país: ajudador, entusiasta, desafiador, leal. Trata-se aqui de dois famosos divulgadores do “Eneagrama açucarado”, na definição usada por David Barba. Nas palavras do autor, este é o Eneagrama que, “corrompido pela psicologia positiva, pretendeu desativar o potencial transformador que emerge quando uma pessoa olha para si mesma sem enfeites”.
O emprego destes adornos e de adjetivos “edificantes” provoca um efeito perverso: se a pessoa teve um contato superficial com o Eneagrama, e busca diagnósticos rápidos, poderá concluir que, para o autoconhecimento, bastará identificar a si mesmo e aos outros com um número (eneatipo). É comum ouvirmos frases como “Minha atitude foi esta porque isso é típico de meu eneatipo. Não poderia ser diferente”. Com isso, adotando uma postura determinista, esta pessoa recorre a explicações simplistas – fruto de mera racionalização – para justificar atitudes e gestos praticados no dia a dia.
David Barba não demonstra a menor preocupação em “dourar a pílula” para o leitor. Seu livro deixa claro que a autoidentificação com um número (o eneatipo) é apenas o primeiro passo de uma longa jornada. As neuroses de cada caráter (termo aqui usado como sinônimo de eneatipo) são aqui descritas com riqueza de detalhes – e ilustradas com contos de Nasrudin e várias anedotas, além dos exemplos de pessoas famosas –, permitindo que o leitor, uma vez identificado seu eneatipo, reconheça as armadilhas do ego colocadas em seu caminho, e que, por meio da identificação das neuroses de seu caráter, traga à tona conteúdos que costumam ficar submersos no inconsciente. Um exemplo simples desta abordagem radicalmente diferente está nos adjetivos empregados pelo autor para se referir ao ego dos quatro eneatipos mencionados anteriormente neste texto: bajulador, impostor, tirano e paranoico. É somente por meio do contato com os aspectos sombrios de sua personalidade que o buscador é capaz de, gradativamente, compreender suas dores de infância para então começar a transcendê-las. Muitas vezes longo e árduo, este caminho não tem atalhos – e envolve, conforme David Barba propõe no capítulo final, “Dez conselhos para seguir trabalhando”, uma dedicação que vai muito além dos livros –, mas traz valiosas recompensas para quem nele persiste.
No processo de preparação deste livro, David Barba bebeu da fonte original e cristalina: Claudio Naranjo. O autor teve contato direto com Naranjo – de início, como participante em seu Programa SAT (coordenado pela Fundação Claudio Naranjo, trata-se de um conjunto de mais de dez atividades psicoespirituais que tem o Eneagrama como alicerce e inclui, dentre elas, a meditação, o Movimento Autêntico, o Teatro Gestáltico e a Yoga), e posteriormente, como editor de seus livros, na espanhola La Llave –, e recebeu diretamente de seu mestre a incumbência de escrever este livro. Nele, os minicontos de Nasrudin expõem o ridículo de cada um dos personagens, bem como as diferentes manifestações de suas neuroses. Tal exposição evidencia o enorme potencial do riso para nos alertar sobre as armadilhas do ego. A descrição dos eneatipos é enriquecida com a apresentação de inúmeros exemplos prototípicos de personalidades célebres.
A tradução do livro que você tem em mãos incluiu um elaborado processo de adaptação, no qual inúmeras personalidades espanholas, da edição original, foram substituídas por outras do contexto brasileiro – processo que contou com a participação ativa de cinco pessoas: nós tradutores, dois tarimbados terapeutas da Escola SAT de Claudio Naranjo e o próprio autor –, além de preciosas pistas que nos foram dadas por um seleto grupo de amigos da Escola SAT. Portanto, cada um dos eneatipos é aqui ilustrado por brasileiros famosos de diferentes áreas: da política, do cinema, da televisão, da literatura e da música popular. Vários outros famosos, do cinema, da literatura e da arte universal, mencionadas no texto original, continuam presentes nesta edição.
No fim de cada capítulo, David Barba inclui o testemunho de uma pessoa que descreve o próprio processo de autodescoberta a partir da identificação de seu eneatipo, com ênfase nos caminhos trilhados no Programa SAT, que lhe possibilitaram uma reconexão com sua essência. Neste conjunto de testemunhos estão os trechos mais comoventes do livro: todos que, como eu, tiveram o privilégio de mergulhar em pelo menos três módulos do Programa SAT terão a chance de se ver refletidos nestes testemunhos, em que as dores da criança ferida são identificadas e, aos poucos, vão sendo integradas à personalidade.
Nos capítulos finais, o autor inclui uma longa entrevista com Claudio Naranjo, em que este descreve as origens do Eneagrama, apresenta relatos reveladores sobre o relacionamento com seu mestre Óscar Ichazo, além de dar detalhes sobre o processo de popularização do Eneagrama, já mencionado neste texto.
Já contando com uma expressiva receptividade na Espanha, onde mais de cinco mil exemplares foram vendidos, O Eneagrama do Mulá Nasrudin contém todos os ingredientes para despertar o interesse do leitor comprometido com o autoconhecimento. Temperado com o bom humor de Nasrudin e sem o menor compromisso de “massagear o ego” do leitor, o livro é uma valiosíssima ferramenta para o autêntico buscador, seja qual for o seu caminho rumo ao sagrado.
Compartilhe nas redes sociais!
Comentários
Seja você a fazer o primeiro comentário!