O Deus Escondido - A pertinência do cristianismo no mundo atual
Por: Patrícia Carneiro de Paula
Mário de França Miranda é teólogo católico, filósofo, jesuíta e professor brasileiro. Nascido em 1936, é Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC Rio e da FAJE. É autor de livros como “A Igreja em transformação. Razões Atuais e Perspectivas Futuras”, Paulinas, e “Caminhar com Inácio de Loyola”, Edições Loyola, entre outras obras. A edição objeto da presente resenha foi lançada em 2023 (1ª edição), pela Editora Vozes, na qual o autor apresenta uma análise clara e didática a respeito do tema tratado no livro. É uma das últimas obras de Mario de França Miranda e tem pouco mais de 100 páginas. Trata-se de uma obra sucinta que se propõe a mostrar Deus presente e ativo, inserido na própria realidade das pessoas e em constante evolução, e a buscar no cristianismo caminhos que indicam um Absoluto que relativiza as construções humanas e o amor fraterno como fator essencial para a humanidade.
A obra está dividida em três capítulos, com um texto inicial que introduz os capítulos e trata do Cristianismo e futuro da humanidade. Os capítulos que seguem possuem títulos todos em forma de pergunta, de modo a instigar o leitor na busca de compreensão acerca daqueles questionamentos. O primeiro capítulo é intitulado “Deus ausente do mundo secularizado?”. Por sua vez, o segundo capítulo é denominado “Um só Deus?”. Por fim, o terceiro e último capítulo, com a pergunta, qual seja: “Um amor fraterno universal?”.
Em “Deus ausente do mundo secularizado?” ele nos apresenta a questão a respeito da crise de Deus, atrelada à sua representação e não necessariamente ao próprio Deus, já que sua representação ao longo da história pode se tornar problemática para as gerações seguintes, quando então define Deus como “mistério, inalcançável, indizível, inapreensível, inconcebível, irredutível a qualquer imagem ou conceito” (p. 22). Ressalta ainda o dinamismo interior do humano que nunca é satisfeito, e que nos leva a refletir sobre a ideia de Deus como totalidade da realidade. Assim, todo o discurso humano sobre Deus é aproximativo, já que todo conhecimento humano provém dos sentidos ou, como se diz atualmente, das experiências, de modo que “novas experiências podem revelar novas facetas de Deus” (p. 23), como se verifica pelo Antigo Testamento (Deus que liberta do Egito, por exemplo) e o Deus misericordioso revelado por Jesus no Novo Testamento. O autor, ainda, enfatiza o problema da secularização como causa que desafia a “fé cristã a se repensar e reformular”, tratando-se, assim, de uma “questão de linguagem (num sentido amplo)” (p. 26), e diante da fé que necessita escuta para ser acolhida, a linguagem também passa a ser importante para o cristianismo, impondo-se o imperativo da inculturação da fé, embora encontre resistência para sua realização. Diante dessa reflexão Miranda indaga como tornar Deus significativo e presente para as pessoas atualmente, sobretudo para os jovens, já que as “invocações, confissões, celebrações tradicionais” pouco dizem a respeito de suas vidas. E ele responde que a questão está na pouca insistência e valorização da ação do Espírito Santo na vida dos cristãos (p. 27) e ênfase apenas nas verdades doutrinais e na ortodoxia das expressões em prejuízo das experiências místicas que elas evocavam. Desse modo, o Espírito Santo é a “força de Deus em ação no mundo em evolução” e consiste em um “dinamismo envolvido em mistério” (p. 30), e toda a realidade está sob ação do Espírito, ou seja, “em toda realidade há uma presença ativa de Deus por meio do dinamismo de seu Espírito” (p. 30-31). Ele ainda ressalta as ações humanas movidas pelo Espírito (amor, compreensão, paz, justiça, etc) como ações movidas pelo Espírito atuante de Deus com vistas a antecipar a realização última da história da natureza e da humanidade, a “salvação definitiva na vida eterna em Deus”.
Assevera, assim, que diante desse dinamismo, não há que se cogitar da ausência de Deus, mas de sua representação tradicional que se esvaneceu e questiona: “Onde encontrar Deus numa sociedade sem Deus?” (p. 38). O autor, dessa forma, acaba por propor outra modalidade de presença de Deus, agora baseada na “linguagem do testemunho de um amor fraterno real, de uma compaixão efetiva, de um compromisso altruísta, de uma solidariedade gratificante” (p. 41), devendo representar, ainda, “testemunho de uma vida voltada para o próximo” (p. 43), assim como se vê na pessoa de Jesus Cristo. É possível, dessa maneira, identificar a ação do Espírito mesmo sem qualquer menção a Deus, uma vez que ações que concretizam um amor pelo semelhante são consideradas “ações críticas”, pois resultam da ação do Espírito Santo, tornando o cristianismo uma religião sui generis, uma vez que professa a ação do Espírito também fora de seu âmbito, ressaltando, o autor, os sinais tradicionais da fé. Afinal, “Deus, onde está?”. O autor responde que “Deus se deixa encontrar por qualquer ser humano que segue o dinamismo do Espírito Santo nele atuante (Gl 5, 25).” (p. 49). Por sua vez, no segundo capítulo, intitulado “Um só Deus?”, a indagação retórica do autor continua iniciando-se por compreender o termo “Deus”, mistério, e como a totalidade da realidade, razão fundamental de tudo e seu sentido último no coração humano em meio a seus afazeres. Enfatiza a presença do mistério em nosso cotidiano e que o nosso conhecimento se realiza dentro de um horizonte de compreensão complexo, e seus componentes não podem ser racionalmente fundamentados. Assim, o termo “Deus” evidencia o inacessível ao conhecimento humano, o “totalmente Outro”, de modo que nossa linguagem sobre Deus é imperfeita e aponta mais para o Transcendente ao qual se dirige do que ao que se descreve. Ressalta, ainda, a percepção (ou a consciência) que temos de Deus, da qual precede a ação de Deus, e essa ação só nos é acessível ao ser expressada humanamente, numa determinada linguagem da tradição, concluindo que todo discurso humano sobre Deus é sempre construção humana, limitada e histórica. Ainda, ao perpassar pelos aspectos diversos relacionados ao Transcendente, o autor enfatiza o aspecto teológico para tal elaboração e como a fé cristã entende a manifestação do Transcendente, como uma atividade contínua universal e que pode ser captada por quaisquer povos, culturas ou religiões, pois é vista como uma doação de si mesmo a outro ser humano, assim como Deus o fez quando veio ao nosso encontro. Assim, a mesma e única ação universal de Deus, que é seu gesto de amor por meio do Espírito Santo, recebe diversas tematizações, dependentes dos contextos socioculturais e históricos e das diversas tradições religiosas, o que abre a possibilidade de que um único e mesmo Transcendente seja invocado por diversos credos religiosos (p. 62-63).É o Espírito Santo e seu dinamismo que conduzem os seres humanos a Deus, com vista a uma conduta de vida, um comportamento em face do próprio semelhante como condição para um relacionamento autêntico com Deus, é esse Espírito que conduz o ser humano que o segue a viver em sintonia com seu dinamismo (Gl 5,25) e o autor sustenta, ainda, consoante a Gaudim et Spes que “o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, ao mistério pascal” subentendendo “os não cristão” neste todos (GS 22) (p. 67).Ao longo do capítulo, ao tratar do único Transcendente, o autor sustenta, também, que ao ser ele apresentando como sentido último, como referência absoluta, Ele desfaz qualquer pretensão de cunho ideológico que se apresente como única e verdadeira leitura da realidade, ou qualquer estrutura social que se considere absoluta (p. 70). Por fim, descreve a importância da invocação do mesmo Transcendente, do mesmo Mistério, em todas as crenças religiosas, pois se constitui em fator de união, de paz e de colaboração mútua em vista de uma convivência humana justa e feliz (p. 72). Segue a análise no terceiro e último capítulo, no qual a questão está relacionada a indagação “Um amor fraterno universal?”. Ele justifica a necessidade da religião em uma sociedade dominada pelo fator econômico, voltada para o lucro e a eficácia, que silencia a questão do sentido último da existência humana, condenando o humano à busca de satisfação imediata, gerando desigualdades e injustiças. Por tal razão entende que é possível buscar na religião uma norma de vida considerada universal, e ressalta sua visão cristã para o estudo do tema (p. 77/78), uma vez que Jesus proferiu palavras e realizou gestos demonstrando que era mais importante ir ao encontro do ser humano do que seguir normas ou práticas tradicionais religiosas (p. 79).
Afirma que Jesus desloca o “sagrado” dos templos para o próprio ser humano, como mediador da oferta de sentido e salvação que recebemos de Deus (p. 80), e indaga: “É a noção cristã de caridade fraterna uma noção universal que fundamente uma modalidade de vida comum a todos os povos da Terra?” (p. 81) e assevera que em caso de resposta positiva, existe a possibilidade de uma humanidade mais unida e sensível às necessidades alheias (p. 81) e cita a Encíclica Fratelli Tutti que se utiliza do termo fraternidade, um imperativo em busca de realização, o modo como um ser humano deve se relacionar com outro (p. 81-82). Enfatiza, ainda, que o Papa Francisco apresenta o amor fraterno em sua “dimensão universal, na sua abertura para todos” e o faz a partir de suas convicções cristãs (p. 82-83).Discorre, ainda, sobre a noção de caridade ou de fraternidade também recebida, compreendida e expressada no contexto de diversas religiões, e cita como exemplos as religiões naturais, o hinduísmo, o budismo, o confucionismo e a mística da religião muçulmana (p. 85-86).O autor sustenta, também, que a lógica que absolutiza a eficácia e a produtividade, relegam o ser humano a um fator secundário, e as religiões, por sua vez, em razão de sua vinculação com o Transcendente, não se submetem a essa lógica e surgem como instâncias críticas no mundo atual, pois todas elas encontram como fundamento a dignidade humana (p. 88).Ele ainda chama a atenção para a urgente necessidade de a humanidade se unir em torno de um valor, de uma motivação, de um objetivo realmente universal, com vistas a sobrevivência da espécie humana, de salvar o próprio ser humano do humanismo, e de considerar o próprio como semelhante em dignidade, direitos, seja ele de qualquer condição social, racial, religiosa ou econômica (p. 93), e que há um dinamismo universal no cristianismo para uma real humanização da sociedade (p. 96). A concretização da esperança cristã de uma felicidade plena e futura é, assim, tarefa de todos nós (p. 97).
A presente obra, assim, busca encontrar o universal no Transcendente vivido nos inúmeros contextos sociais e culturais e que, contém, em sua essência, propostas que visem asseguram a dignidade e a sobrevivência humana, em uma realidade cada vez mais desumana. Para tanto, o autor usa como mediação o próprio cristianismo, sem olvidar a dissonância entre as práticas que não correspondem ao ensinamento de Jesus Cristo, mas focando especificamente na caridade e na fraternidade como chaves de leitura da fé cristã para iluminar práticas dignas e justas para todos sem, contanto, fazê-lo de forma apologética, mas encontrando, também em outras dimensões religiosas, elementos que nos unem em torno do Transcendente e que nos levam ao humano como um todo e em todos os contextos.
Patrícia Carneiro de Paula é doutoranda em Teologia pela PUC-PR. Mestre em Teologia (PUC-SP, 2021). Graduação em Direito (UNIFMU, 1997).
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