Milarepa - Os ditos do Monte Kailash
Por: Alexandre Vieira
A Editora Vozes me presenteou com o charmoso pocket book de autoria de Jean-Yves Leloup - Os ditos do Monte Kailash, que é uma canção escrita em quadras sobre a natureza da mente do Buda (Tathāgatagarbha) proferida pelo sábio budista tibetano Milarepa (1028/40 - 1111/23). Leloup pretendeu promover o encontro entre o cristianismo e a doutrina dos três yanas, as três grandes escolas de pensamento budista, hinayana (o veículo menor), mahayana (o veículo maior) e o vajrayana (o veículo diamantino). Para isso, se apoiou em outro renomado sábio budista tibetano conhecido como Gampopa (1079-1153), um discípulo do próprio Milarepa.
Este é um livro para ser lido em meio a natureza ou num lugar calmo e inspirador. Podemos lê-lo apoiado em apenas uma das mãos enquanto a outra (por que não?) sustenta uma estimulante xícara de chá. Não é um livro para ser fichado ou estudado. É um livro que se lê em um dos nossos, talvez raros momentos de liberdade contemplativa, e assim, somos chamados à presença do autor e dos ensinamentos que ele evoca. Jean-Yves Leloup (1950) tem uma biografia fascinante. É um filósofo e teólogo francês e um escritor prolífico. Já publicou mais de 90 livros em francês com inúmeras traduções para diferentes idiomas. Pertenceu à Ordem Dominicana até 1986 e de lá para cá se especializou no diálogo inter-religioso, sendo o budismo, um dos campos de atravessamentos mais apreciados. E foi de uma gentileza ímpar ao buscar diálogo, estabelecer encontros, traduzir, interpretar, apresentar uma tradição espiritual distinta da sua e ter o destemor de destilá-la para fazer verter um único néctar de sabedoria que pudesse tocar favoravelmente a nossa atenção, pacificando-a.
A ressonância é o efeito que ele (o autor) nos quer provocar. O que define o nosso encontro (autor/leitor - obra/psiquê) é o que ecoa, que produz um sopro de elevação e não aquilo que compara, julga, confronta, exclui. E o mais interessante é que a essa perspectiva aberta, livre, disponível, Leloup vai se referir como sendo a via ortodoxa do cristianismo, que bem poderíamos ler como a via mais próxima no espaço e no tempo do próprio Jesus (Yeshua).
A arte estampada na capa do livro é uma thangka datada de 1400/1500 AD, uma pintura tradicional tibetana, que desde sempre foi feita para ser enrolada e levada nas caravanas a cavalo pelo altiplano tibetano para que pudesse ser mostrada e ensinada em assentamentos, vilarejos e cidadelas medievais estabelecidas por toda a terra das neves. Dentre tantos símbolos e representações, na thangka que ilustra a capa do livro se vê o santo budista Milarepa meditando em uma caverna no sopé do Monte Kailash no Tibete. Ele está rodeado por seus principais discípulos homens e mulheres e protegido desde cima pelo seu estimado professor, Marpa - o tradutor e por seres celestiais.
Ao ler o autor nos comentários selecionados dos Ditos do Monte Kailash de Milarepa a sensação foi a de que estava sendo preparado para a segunda parte do livro, bem mais específica, a respeito do mundo do budismo tibetano e dos possíveis diálogos com as três vias no cristianismo. Leloup conduz esse primeiro momento de sua história para a síntese inicial associada à natureza de Buda (Tatata). Minha recepção aqui foi lenta. Por exemplo, o que fazemos com a sentença: “tudo que surge positivo e negativo pode ser visto como obstáculos ou como oportunidades”? Contemplamos, aceitamos ou rejeitamos, mas não é algo que nos oriente diretamente à ação. Então utilizei de meu tempo de leitura para permanecer naquele lugar hermenêutico onde o sim e o não, a aceitação e a rejeição devem ser deixados à sua própria expressão, ou seja, onde se manifestam como contrários não contraditórios. Se lutarmos com essa visão, solidificamos algo e perdemos o vínculo com o ritmo do autor e com a obra. E assim, por entre aforismos, teses e proposições, Leloup vai aproximando duas tradições espirituais distintas no que tem de mais profundo e elaborado. Uma outra passagem inspiradora pode ser vista quando o autor nos fala sobre o silêncio, não como oposição ou intervalo entre os pensamentos, mas sim como uma manifestação de indiferença esclarecida. Outro modo de dizer: o testemunhar da ausência de ruído diante do ruído! Isso é muito budista, é muito zen! Me faz lembrar uma passagem do documentário Zen in America (2000) em que o mestre Japonês Shunryu Suzuki discorre sobre o ruído ou o som do pássaro como inseparado da nossa própria natureza. Nesse sentido, sendo o canto do pássaro o nosso próprio canto, então um silêncio vivo, uma liberdade pode se manifestar. Assim é como o nosso autor evoca a natureza da mente, como dizemos no budismo tibetano. O medo de estar só e a alegria de estar só são de uma mesma natureza. Permanecer nisso, seja céu ou inferno, samsara ou nirvana, como sendo apenas isso é silenciar. Meditar como o grande lago que reflete todas as coisas, mas não se confunde com elas é uma expressão de sabedoria que torna iguais dois seres humanos distintos em suas tradições ascéticas, mas totalmente inseparáveis na compreensão do que não pode ser compreendido com palavras. Falo do Buda Shakyamuni (o Gautama) e Jesus Cristo (Yeshua).
A segunda parte d’Os Ditos do Monte Kailash é bem mais “técnica”. Em princípio Jean-Yves Leloup faz um gentil acolhimento dos conceitos associados às escolas budistas predominantes, a hinayana, a mahayana e a vajrayana e os três tipos de intelecto no budismo, para somente depois trazer as três vias no cristianismo como uma possibilidade de confluência. Leloup se interessa por descrever os tipos de intelecto a que chama de fraco, passável e superior para gerar o entendimento de que os ensinamentos oferecidos por Jesus ou por Buda sempre são adequados para um tipo específico de pessoa. Onde não há ressonância, não há florescer. Os diferentes intelectos são momentos específicos no desenvolvimento do treinamento da mente e do caminho para o desenvolvimento pessoal. As escolas do budismo indo-tibetano, a fonte dos ensinamentos, por sua vez, são maravilhosas, repletas de professores e professoras potentes, muito bem treinados. Cada escola tem a sua arte e arquitetura, sua iconografia, seu modo de interpretar e propagar os ensinamentos do senhor Buda. E todas elas começam com a compreensão profunda da mesma sentença: Todos os seres sencientes querem ser felizes e não querem sofrer. Quem utiliza o caminho budista para tanto, necessariamente irá se refugiar no Buda, Darma e Sanga - as Três Joias - e irá treinar a partir do reconhecimento das 4 Nobres Verdades, que são, em síntese, a verdade de dukkha, da origem de dukkha, da possibilidade de extinção de dukkha e do caminho que leva até a extinção de dukkha. Esse termo sânscrito indica aqui a nossa insatisfação, nossa angústia, medo da morte, impermanência. Dukkha é como se fosse um jardim, com diversas camadas, texturas, perfumes e colorações.
E é aqui que Leloup compara os três tipos de intelecto (fraco, passável, superior) e as três escolas do budismo (hina, maha, vajra yanas) às etapas clássicas do cristianismo primitivo (iniciantes, progredidos, realizados). O autor bem lembra que essas formas hierarquizadas da evolução da consciência copiam a natureza, sua “ordem”. Assim como as três escolas budistas, os três intelectos básicos combinam com o próprio corpo, fala e mente do Buda. Daqui, tal composição pode se estender para o corpo histórico (Yeshua de Nazaré), o corpo messiânico, crucificado, ressuscitado (Jesus Cristo) e o corpo-vida eterna, o Logos pelo qual tudo existe. É um entrelaçamento, e me parece uma boa coisa a ser feita, sobretudo se pensarmos que somos basicamente cristãos, fomos colonizados e evangelizados e todos os nossos letramentos e analfabetismos espirituais, culturais e políticos derivam deste lugar de origem. O budismo é, portanto, muito bem recebido, acolhido em seus próprios termos nesta obra do estimado filósofo e teólogo francês. Além do mais, é apresentado a uma tradição espiritual comum por aqui de forma gentil e cuidadosa. Há um sentimento pós-colonial e primaveril nessa confluência!
Mais do que isso? Adquiram o livro e manifestem esse encontro por si mesmos. Vale cada página.
Alexandre Vieira é psicólogo-psicoterapeuta informado pelo budismo e pela tradição de Nalanda, mestre e doutor em Sociologia Política pela UFSC.
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