Nilma Lino Gomes: “apesar de todo sofrimento, violência e desigualdade temos a responsabilidade de não desistir do sonho, da esperança e da luta por uma sociedade democrática”

No último domingo, 25 de julho, celebramos o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Essa data relembra o marco internacional de luta e resistência da mulher negra para reafirmar a necessidade de enfrentar o racismo e o sexismo vivido até hoje por mulheres que sofrem com a discriminação racial, social e de gênero.

No Brasil, a data também é celebrada pelo Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Tereza de Benguela foi uma líder quilombola de destaque que resistiu à escravidão durante duas décadas no século XVIII, lutando pela comunidade negra e indígena que vivia sob sua liderança.

Mas, afinal, o que é racismo e sexismo?

Racismo é a crença da existência da superioridade inerente de uma “raça” sobre as demais e, consequentemente, o seu direito de exercer o poder na sociedade e dominar os representantes dos outros grupos raciais.

Sexismo é a crença na existência da superioridade natural de um dos sexos e a inferioridade do outro, e a legitimação do exercício de poder de representantes de um dos sexos sobre os representantes do outro sexo.

Ambos, racismo e sexismo, são formas de preconceito que ficam ainda mais complexas a partir de sua interação com outros preconceitos como a xenofobia, LGBTfobia, o preconceito geracional e de classe social.

O preconceito e a discriminação violentam o exercício de direitos das pessoas cotidianamente. O racismo e o sexismo são muitas vezes naturalizados e banalizados na nossa sociedade. Quando há uma violência contra a mulher, a vítima é negra em mais da metade dos casos. Os dados reforçam o impacto do machismo e do sexismo em relação às mulheres negras e a aniquilação de seus corpos e suas vidas.

As mulheres negras são discriminadas em diversos setores. No mercado de trabalho, estão expostas a condições precárias de emprego, baixa remuneração, diferença desigual de salários, exploração da mão de obra e assédio moral e sexual, em razão da herança cultural racista e escravocrata.

O racismo e o modelo de desenvolvimento social e econômico no Brasil impactam profundamente a vida das mulheres negras. A consequência são mortes de mulheres que poderiam ter sido evitadas: por falta de acesso à assistência de saúde pública e adequada, falta de procedimentos no combate à violência contra a mulher pelo machismo patriarcal, pelas manifestações de discriminação por raça, etnia e/ou nacionalidade, de gênero e/ou orientação sexual, intolerância religiosa, etc.

O que é feminicídio?

Feminicídio é um crime de ódio baseado no gênero, amplamente definido como o assassinato de mulheres. Intenção ou propósito do ato que está sendo dirigido às mulheres especificamente porque são mulheres.

Assim, a data é relevante para celebrar a resistência das mulheres negras e fortalecer a emancipação e autonomia diante das lutas cotidianas contra a opressão de gênero e étnico-racial. A valorização da identidade negra e da cultura afro-brasileira são fundamentais para dar visibilidade e respeito às mulheres negras, além de considerar os elementos da interseccionalidade como raça, classe e gênero.

Em ocasião da data, entrevistamos a autora do livro “O movimento negro educador – Saberes construídos nas lutas por emancipação”, Nilma Lino Gomes. Confira abaixo:

– Neste dia tão importante, as mulheres negras têm o que comemorar?

 O dia 25 de julho, Dia da Mulher Negra, afrolatinoamericana e caribenha não surgiu como comemoração, mas como denúncia e como demarcação simbólica e política da luta por direitos das mulheres negras sem as quais a nossa sociedade não existiria. A mulher negra está na base da construção da sociedade brasileira desde os tempos coloniais, da escravidão, das lutas por liberdade até os dias de hoje. Essa presença tão marcante tem sido violentamente invisibilizada. A data é uma forma de nós, mulheres negras, tornarmos visíveis as histórias de lutas das nossas ancestrais, as nossas próprias histórias e conquistas, bem como denunciar publicamente as desigualdades de raça, classe e gênero persistentes nas Américas e no Caribe.

– Der acordo com dados do Blog da Rede SUAS, as mulheres negras estão no topo da cadeia de vulnerabilidade. No mapa da violência, a vitimização entre as mulheres negras no Brasil cresceu 54,2%, enquanto o homicídio das brancas caiu 9,8%. Os dados mostram que o feminicídio tem cor. O que a senhora acha que pode ser feito para tentar mudar esse cenário tão triste?

É preciso que a interseccionalidade gênero, raça e classe seja considerada como um eixo estruturante de todas as políticas públicas, em especial, as políticas de combate à fome, pelo direito à moradia, saúde, educação, cultura e segurança pública. Os dados alarmantes de feminicídio negro apontam que a violência que incide sobre as mulheres nesse país patriarcal e socialmente desigual é também racista. Por isso, além de políticas específicas de igualdade de gênero e racial, toda e qualquer ação dos governos, dos movimentos sociais, das universidades, das organizações dos direitos humanos em prol da democracia e da justiça social em nosso país devem considerar a raça e o gênero. Um país com altos índices de feminicídio negro como é o caso do Brasil não pode ser considerado uma democracia real, mas uma democracia em risco. Além disso, nos últimos 05 anos todas as políticas para as mulheres e de igualdade racial retrocederam consideravelmente em nosso país. Essa situação tem impactado negativamente o combate ao feminicídio e a aplicação de Leis como a Maria da Penha e a própria Lei do Feminicídio.

– Seu livro “O Movimento Negro Educador” trata de assuntos muito importantes na luta por uma educação de qualidade igualitária. A senhora acha que a educação pode mudar esta cultura do preconceito, machismo e sexismo atual?

A educação tem um papel fundamental na mudança desse quadro. Porém, não pode atuar sozinha. Para mudar a cultura do racismo, do preconceito, do machismo e do sexismo faz-se necessário que a educação atue junto com todas as outras políticas que garantem direitos e justiça social. E também não pode ser qualquer educação. Para ser de qualidade e igualitária tem que ser uma educação democrática, crítica, antirracista, antipatriarcal, antiLGBTfóbica e laica. Uma educação que socialize o conhecimento de forma articulada com uma visão emancipatória de mundo.  Uma educação conservadora que prima por um currículo que omite os conflitos, que nega a diversidade, que reforça hierarquias sociais, raciais e de gênero reforçará a cultura do preconceito, do machismo e do racismo. Lamentavelmente, essa visão conservadora de educação se faz presente nas orientações de várias iniciativas educacionais no momento, alicerçada em uma concepção moralista e fundamentalista religiosa do mundo e da política. Esse tipo de educação precisa ser denunciado e superado. E, na minha opinião, os movimentos sociais são os principais atores políticos que denunciam esse retrocesso na educação, propõem algo novo e reeducam a própria educação, a escola e os órgãos por ela responsáveis.

– Por último, que mensagem a senhora gostaria de deixar para todas as mulheres negras em ocasião de uma data tão significativa?

Inspirada na poeta americana Maya Angelou, eu digo que apesar de toda a violência e desigualdade que incidem sobre nós, mulheres negras, no Brasil e em outros lugares das Américas e do Caribe, ainda assim, nós nos levantamos. Trazemos a resistência e o esperançar como dádivas das nossas ancestrais africanas. Por isso, apesar de todo sofrimento, violência e desigualdade temos a responsabilidade de não desistir do sonho, da esperança e da luta por uma sociedade democrática, equânime e com justiça social que acolha as novas gerações.

Fonte: Blog da Rede SUAS