Livre como uma deusa grega
“Na mitologia, o melhor da humanidade é a mulher”.
A leitura de Livre como uma deusa grega, de Laure De Chantal, nos mostra isso com altos tons de sagacidade, empoderamento feminino e contação de histórias.
Trata-se não apenas de uma coletânea riquíssima de mitos greco-latinos, mas a voz – tanto tempo roubada, silenciada e suprimida – de antigas heroínas, deusas e mulheres do mundo clássico. Elas ganham vida em cada página, parecendo quase se sacudir ao terem suas narrativas expostas e dizer: “Chega! Basta de homens contando as histórias que, desde o início dos tempos, pertenceram a nós. Dê-nos a caneta e o holofote, chegou nossa vez!”. E De Chantal, sem dúvida, dá isso a elas.
Séculos de patriarcado convenceram homens e mulheres de que a dominância masculina é lei e que sempre foi assim; mesmo nas estruturas de pensamento consideradas mais sagradas no Ocidente – em especial, as judaico-cristãs. Está em “todas” as histórias importantes: Eva desobedeceu a seu marido e a humanidade foi punida por isso. A Pandora dos gregos teve um fim parecido, pois desobedeceu aos deuses ao abrir uma caixa – na verdade, um pythos – proibido e, com isso, encheu os humanos com os piores dos males, entre eles a doença, a mortalidade e o trabalho.
Isso parece criar um senso comum de que a cultura greco-latina tinha pouco apreço por suas ancestrais femininas, mas será que isso é verdade? Afinal… “o povo que deu para a sabedoria o semblante de Atena, para a coragem e a fidelidade o de Antígona, para a visão profética o da Cassandra de Ésquilo não menosprezou a mulher”. — Marguerite Yourcenar.
Em Livre como uma deusa grega, De Chantal parece se empenhar na ousada missão de resgatar a dignidade e a potência das deusas e heroínas da Grécia e da Roma Antigas. De que forma? Recontando suas histórias sob as lentes de uma autora que é gentil – e sobretudo justa – com as mulheres. Celebrando a coragem, a fúria, a criatividade, os ‘nãos’ e os ‘sins’, daquelas que por muitos séculos foram apenas as esposas, as vilãs, as vítimas e as coadjuvantes dos homens.
A cada capítulo, uma personagem é desvelada. Elas são divididas entre:
As criadoras: deusas que criam mundos, como Gaia, a Mãe Terra. Ou aquelas, como as Musas e as Moiras, que colecionam e criam histórias, destino e arte.
As guerreiras: as que estão na linha de frente para defender a si e aos entes amados com força, expertise e inteligência. É o caso de Atena, deusa da guerra, do trabalho e da cultura; de Ifigênia, princesa de Argos e das bravas amazonas, caçadoras imbatíveis.
As eruditas: como Métis, a inteligência personificada; Flora, deusa das flores; as sereias e as sibilas, que guiam e ensinam a humanidade a evoluir, através da sua sabedoria ancestral.
As lutadoras: independentes e decididas, que criam seu próprio destino com vigor, como é o caso das feiticeiras Medeia e Circe; de Ártemis, deusa da caça; da princesa Ariadne de Creta e da fiel rainha Penélope, de Ítaca.
As que dizem sim: Alcíone e Báucis; Calíope, de Ulisses; Helena de Tróia; Psiquê, esposa de Eros ou Leda, de Tíndaro (mas também de Zeus). Heroínas e deusas que consentiram e amaram seus parceiros, seja com fins jubilosos ou sozinhos. Assim como as que dizem não: as que nos ensinam o sagrado valor de se estabelecer limites, as que não arredaram o pé nem para homens poderosos, como a ninfa Dafne, a princesa Antígona de Tebas e as deusas Deméter e Perséfone, mãe e filha.
E, finalmente, as rainhas: soberanas poderosas, senhoras da sua cólera e dos seus desejos, como Juno, do Olimpo; Clitemnestra, de Argos; Hécuba, de Tróia e Afrodite, pandêmia (do mundo todo).
As histórias são desveladas sob o olhar aguçado e sensível de De Chantal, que, enquanto helenista, traz referências à base de Homero, Hesíodo, Ovídio e outros poetas da Antiguidade, para analisar essas figuras mitológicas e seus possíveis impactos – ou ausências – na atualidade. Mais do que isso, com fontes bibliográficas robustas, essas figuras são capazes de nos convencer de que precisamos muito mais delas do que imaginávamos!
Livre como uma deusa grega é uma leitura que já considero obrigatória para todos os amantes de mitologia e cultura clássicas. Em primeiro lugar, para descentralizar as narrativas do ponto de vista patriarcal. Em segundo, para vermos em elementos civilizatórios tão importantes como a coragem, a esperteza, a criatividade, o desejo, a liderança e mesmo a fúria, um semblante feminino e não masculino. Para podermos nos extasiar com histórias incríveis e deixá-las nos preencher com empoderamento e respeito. E, enfim, para (tentar) construir um mundo com psiques mais saudáveis e realidades mais igualitárias.
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