Como libertar o presente
Por: André Carvalhal
SEJA LIVRE
“Você se acha livre?” – perguntei em voz alta na minha cabeça.
Desde que lancei “Como salvar o futuro”, em 2020, tenho sido rondado por duas palavras: liberdade e presente. Não é à toa, pois o livro foi lançado bem no início da pandemia (quando comecei a escrever este exemplar que você tem nas mãos), e em seguida os processos de lockdown, o isolamento social, o fechamento de fronteiras e até mesmo os programas de vacinação colocaram em pauta a “afronta” à nossa liberdade individual.
Um tempo antes, escutava que vivíamos o melhor da história. “Nunca fomos tão livres”, com tanto acesso à informação, lugares, pessoas e produtos. Então veio o aviso: FIQUE EM CASA. “Meu Deus, mas e meu trabalho? Meu lazer? A praia no fim de semana? Como vou me exercitar? Não posso deixar de encontrar as pessoas que amo!” E pela primeira vez na vida (da maior parte das pessoas que estão vivendo este momento histórico), o passado deixou de ser referência, e o futuro…
Bem, o futuro ficou ainda mais incerto. “O que temos é o presente.” Mesmo assim vimos pessoas e empresas tentando prever algo do que viria após o que estava começando e ainda não tínhamos a menor ideia de “como” e “se” iria acabar – a pandemia. O novo normal. É, ficar no presente parecia desafiador. Não teve quem não pensasse ou emitisse opinião sobre o que iria acontecer. “Estamos todos no mesmo barco”, muita gente dizia.
Então começamos Então algumas pessoas começaram a perceber que não eram todas que poderiam ficar em casa. “Não, não estamos no mesmo barco. Tem gente de lancha e gente de canoa” – ouvi. Tem gente nadando no braço. Contra a corrente. Pois é… Eu acho que não estamos nem na mesma tempestade. Nunca foi tão forte e tão clara a noção de que há corpos que são mais livres que outros – mesmo com a vontade de sair ou de ficar em casa.
Meu livro anterior fala que o futuro é uma grande ilusão, que é na verdade o resultado das nossas ações. Ele vai ser bom ou não de acordo com o que fazemos hoje. Mesmo assim, a ideia de que tudo vai dar certo no futuro é sedutora e parece trazer uma espécie de fé condescendente, como se bastasse acreditar ou pensar positivo que o futuro será brilhante – ou abundante. “Deitado eternamente em berço esplêndido.”
Está cada vez mais claro para mim que não há mais sentido pensar em sustentabilidade da forma como nos habituamos. “Preservar o futuro”, “Olhar para o amanhã”. Talvez a mania de escapar para o futuro tenha nos tirado os sentimentos de urgência e importância que nossas ações precisam ter. Muitos recursos já estão se acabando (leia sobre o Dia da Sobrecarga da Terra), e não dá mais para pensar em preservar para as futuras gerações se os impactos já estão acontecendo agora.
Temos visto cada vez mais desastres (e crimes) ambientais. É impossível negar as mudanças climáticas e o aquecimento global, a quantidade e os perigos dos plásticos nos oceanos, as pessoas refugiadas devido ao clima. Partes do mundo já estão ficando tão quentes que em pouco tempo ninguém irá sobreviver lá, enquanto há lugares com potencial de serem inundados por conta do derretimento de geleiras (leia sobre o relatório do Intergovernmental Panel on Climate Change [IPCC], Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, divulgado em 2022).
Também cresce a cada dia o número de animais em extinção – ao mesmo tempo que pessoas continuam comendo, comprando e contrabandeando animais, contribuindo para o desequilíbrio da natureza –, o que pode resultar em novas pandemias. Ainda, bactérias estão mais resistentes a antibióticos, e agrotóxicos têm nos envenenado cada vez mais (em alimentos, roupas…).
Além da temperatura, temos visto o aumento do valor das contas de luz e água, bem como do sofrimento e da opressão. Mesmo assim, muita gente ainda nega ou não consegue conectar tudo a uma grande causa que é maior e independente da vontade de grande parte das pessoas. Você já sabe o que está por trás de tudo isso?
O unboxing de Pandora está aí, para quem quiser ver. Estamos vivendo tempos difíceis. Mas a dificuldade não é igual para todas as pessoas. Grande parte da população está empobrecendo – enquanto um grupo muito pequeno se beneficia. Enriquece. Além da questão financeira, muitas pessoas estão mergulhadas numa cultura de ansiedade. Há problemas de saúde mental, autoestima e aceitação, e até isso impacta as questões climáticas.
A vida social de muita gente agora se passa na internet, o que pode ser perigoso. A lógica de funcionamento de muitas redes sociais potencializa o narcisismo humano de forma muito negativa. Em diversas camadas (mais objetivas ou subjetivas), contribui para um certo tipo de individualismo que pode nos desconectar do todo.
Sabemos como deveríamos “ser” pelo que aprendemos com mensagens que correm soltas por ali e pelo que recebemos da propaganda e da produção cultural. Muita gente que não se vê em campanhas, produtos, padrões e dados de pesquisas se mata (ou mata) por isso. Muita gente, que também sofre os impactos dessas mensagens, contribui – direta ou indiretamente – para tais mortes.
Nós nos queixamos e sentimos que não podemos deletar nossas redes sociais, pois muitas vezes dependemos delas para o trabalho (e também para o lazer, os relacionamentos…). Marcas viraram pessoas, e pessoas viraram produtos. Há um estímulo generalizado para “funcionarmos” como empresas, sempre em busca de resultados infinitos e otimizações, reproduzindo um modelo que perdeu o sentido até para o mercado. Poucas pessoas têm noção de seus direitos e deveres.
A democracia já passou do estágio de vertigem e está sendo encaminhada para o CTI (após a publicação deste livro, talvez tenha ido para a UTI ou falecido de vez) (tomara que não). É cada vez mais fácil comprar, baixar ou imprimir uma arma, enquanto vemos livrarias e cinemas fecharem. Nossos dados têm sido usados por corporações para propósitos questionáveis, e pouco se fala em regulamentação – a não ser que seja para ficar ainda pior.
É impossível se esconder da vigilância do governo – e das big techs. Não dá mais para brincar na rua livre – sem o rastreio do GPS ou sem o risco de tomar uma bala nada perdida na cabeça. Fascistas têm redes sociais e muitas vezes sabem usar mais a seu favor do que os antifas, apesar da onda de memes. É também difícil saber o que é verdade ou mentira na internet. Há pessoas que criticam o movimento de “boiada”, mas colaboram com isso, mesmo sem se darem conta.
Enquanto, por um lado, o mercado fabrica mitos de sucesso e alfaídolos, por outro pessoas refugiadas, periféricas, LGBTQIA+, negras, indígenas, mulheres (entre tantas outras) são obrigadas a financiar e manter um sistema exploratório, disponibilizando seus corpos, sangue e suor em troca de sobrevivência. Abdicam de seus sonhos e crenças e têm suas subjetividades corrompidas para trabalhar e alimentar o mercado.
Não dá mais para esperar. Precisamos olhar para o agora, para o que estamos fazendo hoje, para os impactos das nossas ações, com a urgência de quem sabe que pode não haver amanhã. É preciso compreender o peso, o valor e a importância das nossas ações individuais e coletivas. Compreender ainda que, por maior que seja o impacto causado por isso que chamamos de mercado, são pessoas que tomam decisões à frente de empresas e sistemas políticos.
Quando se fala em buscar novos modelos socioeconômicos que visam à igualdade e à justiça social e climática, geralmente a liberdade é colocada em pauta como um valor ameaçado. É como se não houvesse alternativa. Como se o pedágio pago para sermos livres fosse a exploração do planeta e de pessoas. Como se a liberdade individual fosse o ápice da nossa conquista como humanidade. Como se a liberdade não fosse uma ficção.
“Seja livre”, “Seja você”, “Seja feliz” podem ser discursos violentos porque, apesar de bonitinhos, vão contra aquilo a que nos acostumam desde cedo. Se repararmos nas falas, percebemos que são quase uma imposição. E se você não é Você, há algo errado – com você. Só que nem sempre é opcional: poucas coisas à nossa volta nos dão incentivo e possibilidade para sermos (livres) quem realmente somos.
Não é à toa.
“As rotinas monótonas, imitativas, ritualísticas, compulsivas e obsessivas da dependência ativa nos tornam incapazes de pensar e agir de forma adequada e sensata.” A citação é de um trecho do texto “Uma outra perspectiva”, do Narcóticos Anônimos, porém a dependência não está relacionada às drogas.
Dependemos de um modo de vida que nos aprisiona em padrões e fórmulas que aprendemos desde cedo, no qual até o conceito de liberdade se perde. “A liberdade de hoje deve ser usufruída sob todos os seus aspectos, consumida sem trégua, pois somos, agora, uma sociedade de consumidores”, diz Bauman em seu livro “Vida para consumo”.
Vamos comprar. Vamos vender. A saída (ou alternativa, não sei bem como chamar) que nos ensinam para momentos de crise ou desconforto é essa. Cada vez mais. É também a válvula de escape, o amortecedor que ajuda (ou não) a extravasar ansiedades, frustrações, desejos. Por isso tenho entendido que não dá para falar em consumo consciente se não compreendermos o que vem nos tirando a consciência desde cedo.
André Carvalhal está escritor, consultor e facilitador nas áreas de marketing, branding e design para sustentabilidade. É formado em Comunicação Social, pós-graduado em Marketing Digital e com especialização em Design para Sustentabilidade. Atuou na publicidade com passagens pelas maiores agências do Brasil, como JWT e Publicis. Depois fez um longo percurso na moda, passando por algumas das marcas de maior representatividade nacional e projeção internacional, dos grupos Soma, Reserva, Grendene e Arezzo. Atuou nas áreas de marketing, comunicação, tendências de comportamento, negócios e direção criativa. Foi coordenador de Design de Moda no IED Rio e professor de pós-graduação em Marketing e Branding na ESPM, FGV e IED. Atualmente é colunista dos veículos: Revista Ela – O Globo, Carta Capital e Mit Technology Review. E atua como membro de conselho e consultor de empresas como Diageo, Unilever e Disney, nas áreas de Sustentabilidade e Diversidade & Inclusão.
Site: andrecarvalhal.com.br / Instagram: @carvalhando
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