“A proposta é trazer essas provocações, essas oportunidades de abertura para outras noções que nos amparem nessa tarefa árdua de inventar modos de sobreviver no caos”, Ângela Marques

Nossa tendência é repetir e reproduzir no cotidiano certas formas de agir, de lidar com as dificuldades, com as incertezas e com sentimentos negativos que temos pelos outros. Mas, e se for possível fazer de outra maneira? E se for possível remodelar, descobrir outros sentidos nas nossas relações e formas de vida? Com reflexões para esses e outros questionamentos, os autores Ângela Cristina Salgueiro Marques e Luís Mauro Sá Martino, lançam o livro No caos da convivência, pela Editora Vozes.

Em uma entrevista para o blog da Editora, a autora responde, entre outras perguntas, sobre o processo de produção da obra, os desafios da escrita e as dificuldades da convivência em casos extremos, como o que a sociedade passa agora. Leia abaixo:

Editora Vozes: Você já tem textos publicados sobre comunicação e é reconhecida na área. Como foi receber o convite para escrever uma obra que foge das propostas originais das suas publicações?

Ângela Marques: Sou imensamente grata ao prof. Luís Mauro por ter me feito um convite tão desafiador quanto o de escrever este livro. Sou grata também à Editora Vozes, que tão bem acolheu o projeto e acreditou em seu desenvolvimento, nos permitindo uma oportunidade única de construir um outro tipo de relação com os conhecimentos e conceitos com os quais trabalhamos em sala de aula, em nossas pesquisas, congressos e orientações dos trabalhos de nossos queridos alunos e alunas.

O processo de feitura nos mostrou a potência e criação de uma escritura diferente daquela com a qual estamos acostumados. A proposta exigia criação de linguagens, a busca pela melhor forma de dizer o que gostaríamos de dizer, enfim a criação de toda uma nova “engenharia” para que nosso dizer pudesse reverberar e encontrar acolhida junto a leitores e interlocutores que se encontram em vários espaços e possuem outras experiências de vida. Os capítulos e conceitos conversam entre si, promovem aberturas para pausas, questionamentos, para buscar novas ideias e, assim, produzir alterações nas formas de perceber o mundo.

Então, em grande medida, este é um livro que não está nem um pouco distante de quem somos e do que fazemos em nossa trajetória de ensino e pesquisa, do nosso amor pela sala de aula e de nossa dedicação a nossos estudantes. O que o difere das outras publicações que temos juntos é, em grande medida, o esforço de construir um texto no qual os conceitos trabalhem e possam ser apropriados de maneira mais simples, mais direta e leve no encontro com nossos interlocutores. Acredito que nossa tentativa tenha sido mesmo não de dar respostas acerca de “como” viver com os outros, mas permitir que a leitura da obra abrisse possibilidades de deslocamentos no modo como nossos leitores/interlocutores pensam suas maneiras de se relacionarem e de existirem no mundo, dentro de suas condições e possibilidades únicas.  Assim, não se trata de uma obra prescritiva, mas de uma proposta de reflexão, de experimentação com os conceitos e temas, de modo que as pessoas possam questionar, rever, revisitar suas perspectivas e crenças, alterando com isso certas imagens e imaginários ligados à alteridade, às diferenças, aos conflitos e à potencialidade que temos de recriar constantemente nossos vínculos, mesmo dentro de contextos de constrangimento, violência e dificuldades.

EV: Escrever esse livro, que tem uma proposta tão interessante, mas tão nova, um assunto pouco explorado pelo grande público, foi desafiador?

AM: Nós sempre nos interessamos pelo tema da ética e das interações cotidianas, mas sabemos que abordar certas temáticas exige a construção de um pensamento que envolve conhecimento aprofundado, leveza e abertura para que o leitor/interlocutor possa construir a obra conosco. As experiências de cada um e o modo como vivem, fazem escolhas, enfrentam problemas têm que desempenhar um papel central nesta obra, no sentido de que as estratégias que Luis Mauro e eu temos para tornar possível a convivência com os outros podem não fazer sentido ou não ter tanto impacto ou identificação para outras pessoas. É por isso que fazemos tanta questão de enfatizar que o livro não pretende oferecer caminhos e soluções prontas, mas talvez pretende mostrar alternativas para que as pessoas alterem, desloquem, sacudam as maneiras habituais através das quais elas vislumbram a convivência com os outros.

É claro que a construção de vínculos é recíproca: não resolve tudo achar que os temas aqui abordados podem ser usados na prática sem o engajamento daqueles outros que nos cercam. Contudo, sabemos bem que, quando produzimos alterações em nossa rotina, há uma boa chance de que os outros também sejam afetados e tenham que minimamente alterar seus modos de agir. Pensar em como somos tratados e em como tratamos os outros, como mobilizamos afetos quando buscamos resolver problemas, como apreendemos os outros em relação a nós mesmos, as condições nas quais os encontros são ou não possíveis, quais limites podem ser ou não cruzados, empurrados, deslocados.

EV: As convivências ao longo da vida, prepararam você para chegar ao momento de escrever esse livro?

AM: Falamos da convivência a partir de uma perspectiva ética, e isso certamente envolve o modo como cada um de nós modela as interações que nos constituem em tempos e contextos muito diferentes de nossa trajetória. Cada encontro, cada vínculo tecido, cada demanda atendida, cada resposta elaborada para auxiliar alguém vão nos tornando quem somos. E, claro, quanto mais amadurecidos ficamos, mais temos condições de refletir sobre como reagimos nas situações de conflito que nos colocam face a face com os outros. Eu diria que o pensamento da justiça é algo modelado no cotidiano, quando em nossas experiências somos interpelados a produzir saídas e devemos pensar se essas saídas podem, ao mesmo tempo, solucionar nossas urgências, sem criar danos aos demais. Julgar, avaliar, nos adaptarmos às condições dadas é um aprendizado árduo e constante, sobretudo para não fecharmos e classificarmos os outros dentro de nossas categorias, reconhecer suas vulnerabilidades e nossos limites.

Não há fórmulas que indiquem como conviver, só que sim, existem critérios morais que regulam nossa convivência, que regulam o modo como tratamos os outros e como eles nos tratam. O que quero dizer é que, na vida cotidiana, ao mesmo tempo que temos que fazer escolhas e tomar decisões sobre como agir com os outros, temos que lembrar que, numa perspectiva mais ampla, institucional e regulatória, nós nos controlamos reciprocamente e somos também controlados. É assim que o poder age sobre nós. Se formos capazes de identificar tais critérios, de tematizá-los, enxergá-los e discutirmos sobre eles é algo extremamente importante.

Acredito que o livro pode justamente nos auxiliar a perceber as situações nas quais podemos mudar atitudes, como por exemplo, considerar como estar junto com os outros envolve abrigar as oposições e, ao mesmo tempo, alguns limiares de negociação, de trabalho conjunto. Conviver implica localizar as fontes de desumanização e buscar entender suas razões, alterar seus efeitos, tentar produzir outras soluções possíveis para viver no caos e apesar dele.

EV: Esse é um livro que foi escrito e vem sendo pensado há bastante tempo, mas, coincidentemente, calhou de ser publicado e lançado quando a sociedade se encontra em um período de distanciamento social mais que necessário, onde a convivência sai um pouco da sua definição “tradicional” para o convívio restrito às pessoas que moram com você e ao “convívio virtual”. Surgem, assim, ainda mais desafios do que os do caos da convivência tradicional. O livro é um aliado para propor reflexões também sobre o convívio em casos extremos?

AM: O convívio com os outros sempre exigiu de nós um empenho e um trabalho intensos no sentido de preservar as diferenças e singularidades, mas de criar interfaces, aproximações, fronteiras nas quais os encontros possam alternar conflitos e tréguas. Não há como excluir o conflito de nossas existências, porque ele é impulsionador das decisões que tomamos e das escolhas que fazemos diante de uma série de acontecimentos que nos enredam. O problema é quando o conflito, sua potência política e ética de reconfiguração e reorganização das normas e das formas de viver juntos, nos é apresentado sob a roupagem do ódio, da criminalização de certas existências, do apagamentos de vidas e sujeitos considerados indignos.

Conflitos são administrados por nós, pelas instituições, pelo Estado, mas eles não podem ser transformados em algo prejudicial: à democracia, à emancipação, ao bem viver. Resolver um conflito pela aniquilação do outro (entendido como mal a ser erradicado) é um erro que não percebe muitas vezes a verdadeira fonte dos problemas que vivemos em sociedade. A política do ódio impede que vejamos que muitas vezes a fonte dos problemas que enfrentamos é estrutural e não pontual. Muitas vezes nosso sentimento de raiva deriva não de alguém que nos irrita, mas de uma conjuntura na qual desigualdades, assimetrias e injustiças múltiplas nos tornam intolerantes com aqueles que não são como nós.Contudo, por mais complicado que seja alterar as instituições e suas normatividades, acreditamos que a reflexão acerca das interações cotidianas pode nos oferecer algumas pistas acerca de como promover mudanças mais amplas.

Vários dos autores que exploramos no livro nos indicam que a forma que temos para mudar as coisas que existem e como existem é construir outros vínculos outros vínculos entre pessoas, palavras, imagens, movimentos: quando tecemos e retecemos esses vínculos em continuidade estamos fazendo política, ou seja, estamos produzindo oportunidades de invenção de mundos comuns, habitáveis e que sejam fonte de alegria e sonho. Não utopia, mas o que é possível dentro das realidades já existentes, tempos e espaços outros nos quais o cuidado, a responsabilidade, a consideração, a escuta, a amizade sejam possíveis, claro, em meio às tensões e conflitos que nos deslocam e nos obrigam a mudar. Afinal, conviver com uma situação difícil não significa ter que desistir dela (às vezes é necessário), mas pensar sobre as possibilidades de mudança. Elaborar essas possibilidades é um gesto político e ético incrível em prol de transformações importantes nas relações intersubjetivas.

Em casos extremos, acreditamos que é ainda mais necessário rever nossas expectativas e exigências com relação aos outros e conosco mesmos. Esse é um problema central, porque muitas expectativas são criadas e poucas correspondências são encontradas, gerando frustrações e decepções. Cuidar de nós mesmos e dos outros envolve mais do que paciência, envolve uma atenção ao fato de que todos estamos vulneráveis, uns mais do que os outros, mas que não há uma fórmula mágica que nos isente de sermos alvo de agressões, de doenças. O medo da morte, o luto, a perda, suspendem nossa vida e exigem reconstrução, revisão, reinvenção.

Talvez o livro possa contribuir nesse momento em que precisamos encontrar outras alternativas para continuarmos a existir e resistir. Ele é um aliado na medida em que se propõe a oferecer ideias capazes de ajudar em nossas resistências e na criação de alternativas sobre o que é possível fazer em meio a tantas restrições e constrangimentos. Nos casos extremos somos instados a dispensar um esforço imenso para reorientar planos e possibilidades: falamos sobre trauma, perda, medo da morte, mas justamente também de solidariedade, de experimentação de novos rumos, de refazimento das vidas e rotinas.

EV: Para o leitor que olhar a capa do livro e sentir uma pontinha de dúvida sobre ler ou não a obra: por que vale a pena retirá-la da prateleira e degustar essa leitura?

AM: Gosto de uma imagem que surgiu na véspera de uma grande exposição sobre os levantes e insurgências no mundo atual. A exposição virou livro e o autor foi interpelado sobre qual o papel que aquele livro teria na produção efetiva de mudanças. O autor então respondeu que gostaria que aquele livro fosse como uma barricada, que interrompesse os fluxos do tempo e do poder, que permitisse intervalos de tempo para reelaborar o que é importante, para recriar as relações entre as pessoas, para mostrar que é possível viver e habitar diferentemente o mundo.

Acredito que nossa proposta com o livro é também criar intervalos de tempo, um tempo de reflexão acerca de como estamos cuidando dos vínculos com os outros e de como seria possível “fazer diferente”, no cotidiano. O tempo da leitura é imensamente potente e criativo, porque é transformador das ideias, no qual as pessoas possam repensar estratégias de escuta, de abertura para a pluralidade, de montagem de suas experiências de modo a permitir rupturas nos modos usuais de convivência. Assim, a proposta do livro é trazer essas provocações, essas oportunidades de abertura para narrativas outras, noções que nos amparem nessa tarefa árdua de inventar modos de sobreviver no caos.
Abertura para inventarmos juntos, para testarmos e tentarmos juntos algumas possibilidades, conhecermos outras táticas de produção de nossos vínculos. Abrir uma fenda no tempo do cotidiano apressado para refletirmos sobre nossos vínculos, afetos, sobre como podemos encontrar juntos formas de convivência possíveis, outras formas de vermos e lermos o outro e sua experiência. Testar limites e condições em meio aos desafios e dificuldades que se misturam às alegrias e descobertas.

ÂNGELA CRISTINA SALGUEIRO MARQUES é doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde leciona no Programa de Pós- -Graduação em Comunicação. Tem pós-doutorado na Universidade Stendhal, Grenoble III, na França. É autora dos livros Apelos solidários (Intermeios, 2017), escrito com Angie Biondi, e Diálogos e dissidências (Appris, 2018), com Marco Aurélio Prado, e mais de cem artigos nas mais prestigiadas revistas acadêmicas do Brasil e do exterior, além de ser conferencista em várias universidades.

Clique aqui para conferir a entrevista com o autor Luís Mauro Sá Martino.