1984 – George Orwell
Por: Leandro Garcia Rodrigues
Totalitarismos e distopias
“O Grande Irmão está de olho em você”. Creio que essa frase poderia resumir – ou até mesmo denunciar – o conteúdo e sentido geral deste romance de George Orwell.
Publicado na Inglaterra, em 1949, com o título original Nineteen Eighty-Four, mas geralmente traduzido e editado como 1984, este romance provocou um verdadeiro abalo na literatura inglesa. Não se pode esquecer o contexto da sua criação e publicação: fim da Segunda Guerra Mundial, a Europa parcialmente em ruínas, desemprego em alta escala, fome generalizada, o trauma nazista, os diversos holocaustos praticados ao longo daquele conflito e um verdadeiro sentimento de vazio existencial generalizado.
No plano filosófico e artístico, o contexto despertou produções que problematizavam tal situação: o chamado Teatro do Absurdo com o irlandês Samuel Beckett (1906-1989), os franceses Eugène Ionesco (1909-1994) e Jean Genet (1910-1986), o russo Arthur Adamov (1908-1970), o inglês Harold Pinter (1930-2008), o espanhol Fernando Arrabal (1932) e o estadunidense Edward Albee (1928-2016). Na Filosofia, Jean-Paul Sartre lançou O ser e o nada (1943) que apresentou ao mundo as questões do existencialismo, corrente que investiga a ontologia humana e nos apresentou conceitos como “nadificação” e “coisificação”, estes representam o grau zero do direito e do acesso às condições mínimas em favor da dignidade humana. A bem da verdade, o próprio Teatro do Absurdo tem no existencialismo a sua principal base não apenas temática, mas especialmente especulativa. No meio deste turbilhão estético movido pela ideia de que os sentimentos penetram e deflagram todas as relações humanas, temos George Orwell publicando o seu 1984.
Em uma única e rápida classificação, este é um romance altamente distópico.
“Distopia” é a falta de utopia, de esperança, de perspectiva positiva de melhora; e também é o estado de intensa opressão, desespero e privação das condições mínimas de felicidade e contentamento. Tais são as estratégias mais usadas pelos personagens O’Brien e Winston Smith, líderes messiânicos e sádicos nas suas intenções para a sociedade sob um medíocre controle. Por isso ele é chamado de “O Grande Irmão”: aquele que tudo vê de forma onisciente, onipresente e onipotente. Ou seja, uma representação contrária e cruel da noção de Deus:
Atrás de Winston, a voz da teletela ainda tagarelava
sobre o ferro-gusa e o total cumprimento
do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e
transmitia simultaneamente. Qualquer som que
Winston fazia acima de um sussurro poderia ser
capturado por ela; além disso, enquanto ele permanecesse
dentro do campo de visão da placa
metálica, ele também poderia ser visto, além de
ouvido. Claro que não tinha como saber se você
estava sendo vigiado em um momento específico.
Não era possível adivinhar a frequência com
que a Polícia da Mente sintonizava um aparelho.
Era até mesmo possível que ela vigiasse a todos
o tempo todo. Mas, de todo modo, eles podiam
conectar-se no aparelho que quisessem e quando
bem entendessem. Todos tinham que viver –
e viviam, já que o hábito virou instinto – supondo
que cada som que faziam era ouvido e, exceto
na escuridão, cada movimento era investigado.
O Grande Irmão controla o seu “Estado” de várias formas, através do seu partido e dos ministérios criados:
- da Verdade: responsável pela falsificação cotidiana do passado para adequá-lo aos interesses
- do partido, e também cuidava das notícias, entretenimento, educação e artes;
- do Amor: fazia a manutenção da lei e da ordem através da espionagem e repressão via torturas
- física e psicológica;
- da Paz: o promotor das guerras;
- da Riqueza: responsável pelos assuntos econômicos, especialmente a manutenção da fome e do desemprego, pois assim se controlava o tecido social e suas aspirações.
Assim, o total controle sobre a população era exercida sadicamente pelo líder, um ditador que se orgulhava de ser visto como uma espécie de messias, de libertador e salvador de uma pátria subjugada e sem perspectivas de mudança e melhora.
Antes mesmo de se completarem trinta segundos
do Ódio, metade das pessoas no salão já
emitia incontroláveis exclamações de fúria. Era
impossível tolerar o rosto presunçoso e ovino na
tela e o poder aterrador do exército eurasiano
atrás dele; além disso, o mero ato de olhar ou
mesmo pensar em Goldstein causava automaticamente
medo e raiva. Ele era um objeto de ódio
mais constante do que a Eurásia ou a Lestásia,
já que, quando a Oceania estava em guerra com
uma destas potências, geralmente estava em paz
com a outra. Mas o estranho era que, embora
Goldstein fosse odiado e desprezado por todos,
embora todos os dias, e milhares de vezes ao dia,
nas plataformas, nas teletelas, nos jornais, nos
livros, aonde quer que fosse, suas teorias fossem
refutadas, esmagadas, ridicularizadas, exibidas
ao público como o lamentável lixo que eram –
apesar disso tudo, a influência de Goldstein parecia
nunca diminuir. Sempre havia novos trouxas
esperando para serem seduzidos por ele.
Tradicionalmente, sempre se atribuiu a este romance uma contundente crítica aos mais diversos totalitarismos políticos, particularmente os de direita. Para isso, a crítica sempre lembra da predileção marxista do próprio George Orwell. Tal classificação é possível, pois Orwell foi testemunha de inúmeros regimes políticos de práticas e ideologias totalitárias e ditatoriais, especialmente o nazi-fascismo que se espalhou pela Europa do seu tempo e suas ramificações, como as ditaduras do Franquismo (na Espanha) e o Salazarismo (em Portugal).
Entretanto, com o advento de um certo neoconservadorismo político-ideológico nos últimos anos, 1984 também tem sido lido e identificado por estes leitores como uma crítica aos governos totalitários de esquerda, de forma particular com os regimes comunistas do antiga Cortina de Ferro e os atuais ainda persistentes.
Seja como for, o Grande Irmão é um ditador, um fascista messiânico consciente do seu papel, que gosta e promove o culto à sua própria personalidade, manipulador e praticante dos mecanismos de controle do “vigiar” e do “punir”, o que levou George Orwell a antecipar estes conceitos tão bem explorados, nas décadas de 1960 e 1970, pelo filósofo Michel Foucault. Afinal, estes eram os lemas do partido controlador do governo e do próprio ditador:
GUERRA É PAZ
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
IGNORÂNCIA É FORÇA
Dessa forma, George Orwell conseguiu – com o seu 1984 – uma verdadeira atemporalidade, uma vez que tais temáticas são sempre atuais e se atualizam em cada época e espaço, de acordo com as dinâmicas histórico-político-sociais de cada contexto.
Este romance problematiza, dentre tantas questões sensíveis e complexas, a perigosa noção de poder: que pode ser assaz maléfica se dominada e praticada por líderes mentecaptos e comprometidos com os seus próprios projetos de poder, especialmente quando estes são travestidos de boas e nobres intenções. Afinal, o poder estabelecido pode subjugar mentes, corpos e emoções.
Enfim, a mensagem de 1984 não é otimista. O leitor deve estar preparado para isso, pois em alguns momentos um sincero sentimento de mal-estar nos é despertado, provocando uma necessária náusea que julgo importante para nos provocar as mais diversas sensações próprias de uma boa recepção produtiva.
Ficção não é simplesmente uma mentira; ficção é uma (re)construção, pois existe uma “verdade na ficção”. E julgo que certas ficções são mais “perigosas” do que a realidade… e 1984 é a comprovação deste fato.
Preparando esta edição
O texto final deste volume da Coleção Vozes de Bolso – Literatura foi obtido por meio de tradução, a
pedido da própria editora, a partir do original inglês Nineteen Eighty-Four (Londres: Secker & Warburg, 1949).
Dialogando com outras artes
1984 tem influenciado e despertado os mais diferentes diálogos entre o seu enredo e outras produções artísticas, que nem sempre repetem o seu título, mas intertextualizam a sua temática e proposta.
Destaco:
I – Cinema
a) 1984 – o futuro do mundo (1956): filme britânico, dirigido por Michael Anderson, é a primeira versão cinematográfica da história de George Orwell. A história é bem diferente do romance,
terminando com o início da queda do partido; é geralmente classificada como a pior adaptação
desta obra para o cinema.
b) Nineteen Eighty-Four (1984): produzido e dirigido por Michael Radford, em 1984 propositalmente!), é considerada a versão mais fiel à obra de George Orwell. Foi muito acolhido pela crítica especializada, tendo John Hurt interpretando Winston Smith e Richard Burton como o personagem O’Brien, dentre outros.
c) V de Vingança (V for Vendetta), de 2005: dirigido por James McTeigue e produzido por Joel Silver e pelas irmãs Wachowski, que também escreveram o roteiro. V de Vingança trata de temas como a homossexualidade, a crítica da religião, o totalitarismo, a islamofobia, o terrorismo e, por isso mesmo, sempre despertou críticas e elogios dos mais diferentes grupos sociopolíticos. Existe
uma fortíssima intertextualidade com o enredo de 1984. No elenco, os destaques foram Hugo
Weaving e Natalie Portman.
II – Quadrinhos
a) V de Vingança (V for Vendetta), série iniciada em 1982, em preto e branco, editada pela editora
britânica Warrior e escrita por Alan Moore e desenhada por David Lloyd; explora um futuro
distópico e pós-apocalíptico, bem conectado ao enredo de 1984. No Brasil, foi publicada em 1989
em cinco edições em cores pela editora Globo e mais tarde pela editora Via Lettera.
III – Teatro
a) 1984 (de 2018): adaptada e montada no Teatro Porto Seguro (SP), manteve a noção principal de
distopia própria do romance de George Orwell. Foi dirigida por Zé Henrique de Paula e teve um
grande número de atores no seu elenco, com destaque para Carmo Dalla Vecchia (O’Brien) e Rodrigo Caetano (Winston Smith).
Leandro Garcia Rodrigues é doutor e pós-doutor em Estudos Literários pela PUC-Rio e pós-doutor em Teologia pela Faje-BH. Também é crítico literário e especialista em Epistolografia – estudos críticos sobre cartas e correspondência entre escritores.
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