O essencial de Marx
Por: Bruno Belém
O essencial de Marx, editado por Otto Rühle, é uma costura cuidadosa de excertos do livro I de O capital. Se para o uso exegético ou historiográfico um texto integral é imprescindível, há outros em que uma edição condensada não é apenas para-quem-tem-pressa, mas antes um procedimento de desenlace.
Apesar de certo arejo, o começo do livro (seção I) continua difícil, mas o caminho menor até o Capital (seção II) favorece seu mapeamento. Nesses primeiros passos, Marx está buscando as determinações do valor através da articulação entre o papel da propriedade e as relações entre as mercadorias força de trabalho [MF], produto do trabalho [MP] e dinheiro [D]. Ao passo que na Idade Moderna reina a concepção de que a riqueza é natural, identificada à acumulação (mercantilismo) ou cultivo (fisiocratismo) de um valor dado (em metais preciosos, na terra), para a economia clássica, ao contrário, a riqueza é diretamente social, porque o valor é sempre produzido. Daí as teorias de Smith e Ricardo: a mercadoria é valor de uso, atributo qualitativo, A, e valor de troca, atributo quantitativo, x, e o trabalho é a medida do ou o próprio valor x de A.
Marx modifica esse modelo. A necessidade formal da troca não vem do processo de circulação [C], ou seja, a trocabilidade não é um atributo das mercadorias. C, por si só, é a esfera da contingência: a troca de xA por yB não garante sua comensurabilidade, pois não expressa necessariamente a razão entre duas grandezas, mas uma dupla coincidência de desejos, que pode ou não se repetir, porque x e y são quantidades indexadas às suas respectivas qualidades A e B. Antes, é no processo de produção [P] que a troca se torna formalmente necessária, porque em P tudo é produzido para ser trocado, todo valor de uso que o trabalho concreto produz, pelas diferentes qualidades de dispêndio fisiológico, ao longo de diferentes quantidades de tempo, está implicado em um sistema que precifica a priori, em P, as MP que chegarão em C para se trocarem por D. Marx não recusa, pois, a existência de um agregado do autointeresse, a codeterminação da oferta e da demanda tracionada pela alocação de recursos, mas isso acontece a posteriori, de modo que, em geral, o preço de mercado é assintótico em relação ao de produção – via de regra, a caneta não suplanta monetariamente o carro. Por isso, preço não é valor, mas este não é sem aquele. O valor tem uma substância, o trabalho abstrato, cuja grandeza é o tempo de trabalho socialmente necessário; não o tempo cronológico para MF produzir uma unidade de MP em cada empresa de um setor S (que contém, p. ex., os subconjuntos E1 = e E2 = ), mas o tempo da sua produtividade média, setorial (no caso, S = ), que é o que fornece a medida do valor, sua quantificação. Embora só o livro III vá abordar propriamente como essa dinâmica de aferições e sua parametrização pela concorrência se dá, no que interessa ao livro I ela resulta na transformação dessa unidade de tempo na unidade de conta que dá forma ao valor, o valor de troca, através do preço. O que exige que D passe da insipiência, como foi e é o caso em diversas sociedades, à generalização – que é um decalque da generalização da produção para troca, ou seja, da mercadoria – e da generalização à autonomização. Um dos resultados dessa série de mediações é o que o indivíduo não é capaz de figurar as condições de valoração da atividade social, de modo que na sua experiência a mercadoria aparece, fetichistamente, como portadora de um valor intrínseco. Porém, há um movimento real nessa autonomização. No capitalismo, a grandeza do valor de D não é só escalar, mas também vetorial, ela tem uma orientação: é valor que se autovaloriza, é Capital. O esquema de fluxos que emerge ao final do capítulo 4, por fim, introduz o fundamento de classes desse processo: trabalhadores [▬] circulam pelo circuito MF→D→MP e capitalistas [⁃⁃⁃] pelo D→MP→D’ (onde ’ denota um incremento à quantia de D). No processo considerado como um todo, trabalhadores e capitalistas se encontram em duas ocasiões: P, onde trabalhadores efetuam a transação MF→D e capitalistas D→MF, e C, onde trabalhadores efetuam D→MP e capitalistas MP→D’.
Ao longo de um percurso que vai ocupar o meio do livro (seções III, IV, V e VI) – talvez o segmento mais bem-sucedido da compressão de O essencial de Marx – Marx apresenta e desenvolve sua teoria da acumulação por exploração, que busca mostrar que o incremento ’ à quantia de D, o lucro, é espoliado dos trabalhadores. Há dois operandos em questão: o valor de MF, que é (hipoteticamente) igual a soma dos valores no conjunto R das MP que uma sociedade convencionou como necessárias à reprodução material da vida dos trabalhadores; e o valor produzido ao longo da jornada de trabalho, no conjunto J. Se R contém uma unidade do valor de uso A e outra de B, e o valor de cada é 2, então R = . Sendo J = , haveria uma troca “justa”. No entanto, para Marx, J é sempre maior que R, seja porque J não resulta só da adição do valor de MF, capital variável, mas também da transferência de frações do valor dos meios de produção, capital constante, adicionadas em trabalhos pretéritos, seja porque a precificação de MF é pressionada para baixo pela redução tendencial de sua demanda pelos capitalistas, cuja concorrência força a ampliação da parte constante da composição do capital. Esse excedente de J sobre R, Marx chamou de mais-valor, que tem duas modalidades principais de extração: o mais-valor absoluto, que consiste no prolongamento de J, p. ex., em 50% de tempo, resultando que, sendo J = e R = , 2 de valor é espoliado; e o mais-valor relativo, que consiste na elevação da produtividade do trabalho concreto na produção das MP de R, de modo que ao produzir mais dessas MP no mesmo tempo que antes, p. ex, o dobro, e com isso reduzindo o valor de cada unidade pela metade, sendo J = , agora, embora a reprodução material da vida necessite das mesmas quantidades de valor de uso, os valores deste mudaram, sendo R = , resultando que 2 de valor é espoliado. A extração do mais-valor só é possível pelo mesmo motivo que é invisível: o salário paga por R, mas compra MF, ou seja, paga pela reprodução material da vida, mas compra o controle da contextura de J.
O fim do livro (sessão VII) busca se contrapor à explicação hegemônica para a gênese da estratificação social no capitalismo, de que a individuação desses estratos é consequência de escolhas intertemporais, baseadas em preferências de poupança e consumo: no polo que privilegia o benefício futuro em detrimento do custo presente, a assim chamada acumulação originária engendraria os proprietários privados dos meios de produção de MP, e no polo das preferências inversas, os agentes seriam reduzidos a portadores de MF. Para Marx, ao contrário, o Capital não se origina no acúmulo endógeno em um polo, mas na expropriação do outro, como procura mostrar na reconstrução historiográfica dessa perpetração pelo Estado e pela contínua transformação de P e C. No entanto, o livro não termina se voltando para o passado, mas apontando a tendência da expropriação também e sobretudo como intracapitalista: propriedades privadas sendo incorporadas por outras, cada vez maiores, em direção à propriedade social – o que Trotsky, em seu confiante prefácio à edição de Rühle, chama de “inevitabilidade do socialismo”, há poucos meses da invasão à Polônia e outra volta no parafuso da História.
Bruno Belém é psicanalista e mestrando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP).
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