Era uma vez… o Diabo

Por Leandro Garcia Rodrigues

A literatura é uma das formas mais complexas de representação artística da vida, das pessoas e de diferentes situações e anseios que configuram o existir humano. Literatura é ficção, tal fato não se questiona; todavia, o texto literário pode ter reflexos que intertextualizam com o cotidiano e com a história de pessoas e grupos sociais. Tal fato se percebe na intrincada representação do Diabo nas artes em geral, particularmente na literatura. É o que se pode perceber nesta coletânea, ora publicada pela Editora Vozes, que tem a interessante missão de apresentar um outro Diabo e outras possibilidades para a representação e a interpretação desse personagem em diferentes textos literários.

Em geral, o Diabo sofre as consequências da sua própria natureza constitutiva: ser relegado a uma dimensão maligna e infernal e a todo um universo que gira em torno dessa simbologia. Na verdade, o discurso em torno dessa figura extrapola os limites da teologia e atravessa outras áreas: a história, a psicologia, a filosofia e acaba nas representações artísticas as mais variadas. No imaginário popular, o Diabo é fortemente lembrado e representado, não é à toa que adquire vários nomes (muitos até pejorativos): Maligno, Coisa-Ruim, Capeta, 7 Peles, O Inimigo, Satanás, Tinhoso, Capiroto, Satã, Lúcifer, Cramunhão, Sarnento, Demo, Belial, Demônio, Cão, Desgraçado, Maldito, Anjo Mau, Belzebu, Príncipe das Trevas, Pai da Mentira, Chifrudo, Malfazejo, Exu e tantos outros, variando muito de acordo com a região geográfica, algo muito sintomático num país com as dimensões territoriais do Brasil. Inclusive, não é exagerado afirmar que, na literatura de cordel brasileira, o Diabo é uma das figuras mais marcantes, uma personagem sempre cativante e até importante e definidora de muitos enredos.


Pode-se afirmar que o Ocidente tem sido, ao longo dos séculos, profundamente marcado pelos antagonismos entre o Bem e o Mal, o Inferno e o Céu e Deus e o Diabo. Há todo um imaginário que gira em torno dessas dualidades que influenciou, dentre tantas coisas, a própria literatura barroca, fazendo com que o Diabo seja uma espécie de “fantasma coletivo ocidental”, uma preocupação – às vezes uma verdadeira neurose! – que tem habitado o nosso sistema de signos e de significados.

Nesse sentido, as três principais religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – têm sido as grandes responsáveis pela manutenção, e até pelo reavivamento, da figura do mal e dos seus efeitos sempre maléficos, especialmente para a alma e sua possível perdição. Há um verdadeiro discurso escatológico associado, não raras vezes, à danação eterna da alma dos infiéis que sucumbem às forças diabólicas, principalmente aqueles que não viveram uma vida moldada pelos valores religiosos e salvíficos pregados e defendidos por essas mesmas religiões161. Segundo Ferreira e Crozara (2014):

É a partir da Grande Crise do Judaísmo que
o Diabo é definido como inimigo confesso de
Deus e a divisão do mundo é consumada entre
Deus e o Diabo. Isso não foi uma invenção
judaica, pois foi inicialmente formulado no
século VI antes da era cristã pelo Mazdeísmo:
entre os iranianos após Zoroastro. Os
judeus tinham ido buscar na Mesopotâmia o
esquema do Gênesis e possivelmente o dualismo
Deus-Diabo. A partir de então, o Diabo
tinha assegurada uma longa vida. […] O Diabo
aparecerá no Novo Testamento a partir de
possessões violentas, e Jesus é o responsável
por expulsar esse demônio. Além disso, o
Diabo será identificado com a doença, sendo
caracterizado como espírito sujo. […] Ou
seja, a história do Diabo confunde-se com a
história do próprio cristianismo.

Por uma razão metodológica de espaço e limite para este posfácio, é-nos inviável fazer uma “história do Diabo”, pois consiste em assunto assaz complexo e longo, cheio de múltiplas especificidades históricas, culturais e teológicas, variando muito de acordo com a cultura e com a tradição religiosa consideradas. Podemos afirmar que o Diabo tem sido uma personagem literária deveras explorada, analisada e representada das mais diversas formas, com inúmeros contornos que enriquecem a sua análise e têm provocado as mais interessantes interpretações por parte da crítica literária ao longo dos anos. Esta coletânea vem contribuir para o enriquecimento cultural em torno dessa intrigante criatura e do seu legado simbólico, trazendo inúmeras facetas que provocarão as mais diferentes sensações no leitor. Dos seus vários textos, destaco este fragmento do conto italiano “O Diabo desposa três irmãs”:

Um dia, o Diabo teve vontade de se casar.
Ele deixou o Inferno, tomou a forma de um
belo jovem e construiu para si uma bela e
grande moradia. Quando ela acabou de ser
construída e estava bem arrumada e decorada,
ele se introduziu em uma família que
tinha três belas filhas e fez a corte à mais velha.
Ele foi do seu agrado, os pais ficaram
encantados por ver sua filha se casar com um
tão belo partido, e pouco depois as núpcias
foram celebradas. Quando a esposa entrou
em sua casa, ele lhe ofereceu um pequeno
buquê de flores amarradas com bom gosto,
mostrou-lhe todos os cômodos da casa e a levou,
finalmente, a uma porta aberta
.

– A casa inteira está à sua disposição – disse ele. – A única coisa que peço é que nunca, jamais, abra esta porta.

Vemos aqui uma interessante humanização dessa figura maligna, um Diabo que sente e sofre as vicissitudes e necessidades da condição humana, deixando sua morada eterna – o Inferno – e vindo ao mundo terreno buscar pretendentes para o seu casamento. Ou seja, temos aqui uma espécie de hierogamia muito comum nas narrativas mitológicas de origem clássica, principalmente as gregas, nas quais era comum a entidade divina deixar o Olimpo (ou o Hades), travestir-se de ser humano, seduzir mulheres e homens e, com estes, compartilhar de uma forte e marcante experiência amorosa.

Nesta coletânea, o leitor percebe que a literatura sempre humanizou o Diabo, compartilhando com
este os prazeres e as idiossincrasias da condição humana. Não exagero em afirmar que o Diabo tem sido muito mais humanizado do que o próprio Deus, pois este sempre é representado como um ser etéreo, supremo e quase inalcançável; já o Diabo aparece, em muitos textos literários, como um amigo, um pretendente e até um irmão ou familiar, como se percebe no conto “O Diabo como cunhado”:

Os sete anos que o Diabo impusera ao rapaz
tinham terminado. No dia das núpcias, uma
esplêndida carruagem, brilhante de ouro e pedras
preciosas, apresentou-se diante da casa do
comerciante. O aprendiz, de agora em diante
um jovem, rico e elegante senhor, desceu da
carruagem. Sua noiva ficou aliviada, sem um
grande peso nas costas, e gritos de alegria foram
ouvidos. Em um longo cortejo, os noivos
foram para a igreja, pois o comerciante e o
estalajadeiro tinham convidado todos os seus
parentes. Apenas as duas irmãs da feliz noiva
estavam ausentes: de raiva,
uma se enforcara e a outra se afogara.
Ao sair da igreja, o noivo
viu, pela primeira vez em sete anos, o
Diabo empoleirado sobre um telhado, rindo
com um ar satisfeito […].

É a riqueza que a literatura nos proporciona: reconfigura personagens e tradições, ressignificando-as
sob as mais diferentes perspectivas de representação imagética e simbólica. Afinal, segundo a Teoria Literária, uma das principais características da literatura é justamente a plurissignificação, e tal premissa é explícita em relação ao Diabo: maligno, sedutor, inteligente e – quem sabe – bom.