“Ele acrescenta com acuidade a perspectiva sociológica e histórica sobre o diabo”, Edin Sued Abumanssur

Edin Sued Abumanssur

O diabo, uma biografia“, de Philip Almond, é o mais recente e muito bem vindo estudo sobre esse personagem basilar da cultura ocidental. Ele não apenas vem se somar com a bibliografia já existente, mas acrescenta com acuidade a perspectiva sociológica e histórica sobre o diabo.

Entre os autores disponíveis em português podemos citar: Elaine Pagels, Henry Ansgar Kelly, Alain Boureau, Jeffrey Burton Russel, Robert Muchembled. Há mais, são autores que tratam do mal e do demônio na Bíblia, na literatura, na cultura popular. A lista de livros pode ser bem grande. Sobre o diabo no Brasil também há literatura específica e cito apenas Alfredo Oliva a título de exemplo. Cada um desses textos tem os seus pontos fortes e fracos.

Em que o livro de Almond, publicado originalmente em 2014, pela I.B.Tauris, Londres/Nova York, trás de novidade? A boa novidade deste livro é que ele constrói a biografia do diabo absolutamente imbricada com a biografia e os rumos de nossa cultura ocidental. Ele mesmo afirma que, na cultura cristã, “a narrativa humana não pôde ser contada e a vida humana não pode ser vivida separadamente da ‘vida’ do Diabo”. Em grande medida, somos aquilo que o diabo fez de nós ou por nós.

Alguns dos fundamentos da nossa cultura podem ser traçados pela biografia do diabo, como ele emergiu e principalmente, como ele submergiuna história moderna. Um dos nossos paradigmas essenciais e que funda a ciência moderna é a divisão da realidade entre natureza e cultura. Não fosse pelo diabo essa divisão não teria acontecido tal qual a conhecemos e, consequentemente, os rumos da ciência poderiam ter sido outros. O desencantamento do mundo tem início com a necessidade de se estabelecer os limites para a atuação do diabo, discussão teológica que antecedeu a Reforma Protestante do século XVI. Tomás de Aquino já havia distinguido o mundo espiritual do mundo natural.Todos os eventos que acontecem poderiam ser de ordem natural (seria a maioria dos eventos) ou de ordem espiritual. Estes últimos poderiam ser subdivididos em milagres (miracula) e maravilhas (miranda). O milagre seria a intervenção divina na ordem natural sem qualquer mediação. A maravilha seria também uma intervenção divina, mas dependente de causas secundárias e não implica na suspensão da providência divina ordinária. A ação do diabo só aconteceria no âmbito das maravilhas, porque os milagres seriam atribuição exclusiva de Deus. Essa proposição limitou a ação dos demônios, mas não impediu que eles continuassem a agir nos espíritos das pessoas. Na verdade, os demônios se fizeram cada vez mais presentes no reino espiritual.

O interessante nessa questão não é apenas a restrição da ação do diabo ao campo espiritual, mas, principalmente, a divisão criada entre mundo natural e mundo espiritual. Essa distinção evoluiu em direção àquela que conformou o pensamento e as motivações da ciência moderna e forneceu os fundamentos para a expansão da civilização europeia, a saber, a separação entre natureza e cultura.

O mais interessante no livro é a maneira como o autor alinhava o destino do diabo na elite letrada da Europa. O diabo morre, para o mundo intelectual europeu, no século XVII e o próprio Deus segue o mesmo caminho, pelas mesmas razões, um século mais tarde. Na Europa moderna não havia mais lugar nem para Deus e nem para o diabo. Dois sem-teto, dormindo na sarjeta da vida intelectual.

O livro de Almond é leitura obrigatória não apenas para os interessados na figura mesma do diabo, mas para qualquer um que queira entender o percurso do pensamento moderno, sua gênese e seu destino, até os nossos dias.

Sobre Edin Sued Abumanssur:

Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da PUC de São Paulo. Pesquisador do campo evangélico, autor do livro “Do ecumenismo ao diálogo inter-religioso” (Recriar). Ministra cursos na pós-graduação sobre Sociologia do diabo: o imaginário sobre o mal.