Não durma, há cobras: Vida e linguagem na Floresta Amazônica
Por: Melissa Lazzari
O livro Não durma, há cobras: Vida e linguagem na Floresta Amazônica é de autoria de Daniel Everett, acadêmico norte-americano influente nas áreas de linguística e de antropologia. Originalmente publicado em 2009 em língua inglesa, a obra foi traduzida para o português por Danilo Vaz-Curado R. M. Costa e publicada em 2024. O subtítulo antecipa os dois pilares da obra: vida e linguagem. Nos anos 1970, Daniel Everett, um missionário de então 26 anos, é enviado para conviver entre os pirahãs, etnia indígena da Amazônia, de forma a vivenciar justamente a vida e a linguagem daquele povo.
O objetivo inicial da estadia de Everett, como se pode imaginar, era o de converter aquele povo ao cristianismo. Para isso, o missionário deveria aprender a língua pirahã e traduzir o Novo Testamento. No entanto, logo no “Prólogo”, o leitor encontra indícios de que a história acaba por tomar outros rumos. É nessa parte inicial da obra que Everett comenta, por exemplo, sobre o curioso título: Não durma, há cobras, uma expressão para se despedir à noite, como dizer boa noite. Na crença pirahã, dormir demais não é positivo, porque deixa o indivíduo mais vulnerável aos perigos da selva. Dormir pouco é sinal de força, um valor positivo na sociedade. Everett reconhece que os pirahãs vivem conscientes dos perigos impostos pelo ambiente, mas mesmo assim termina o “Prólogo” dizendo
Os Pirahãs me mostraram que há dignidade e profunda satisfação tanto em enfrentar a vida e a morte sem o conforto do céu ou o medo do inferno quanto navegar em direção ao grande abismo com um sorriso. Eu aprendi essas coisas com os Pirahãs e serei grato a eles enquanto viver. (EVERETT, 2024, p. 17)
Mas como um missionário nascido na Califórnia deixa de lado o objetivo da conversão para se abrir a uma cultura ameríndia e “pagã”? É desse percurso que as três partes do livro dão conta. Intituladas de “Vida”, “Linguagem” e “Conclusão” e divididas em capítulos menores, as três partes trazem relatos em primeira pessoa sobre as vivências de Everett na Amazônia, que somam pelo menos 30 anos - durante esse período, a esposa e os filhos do autor vivem também na selva amazônica. O texto conta ainda com a seção “Algumas notas sobre a linguagem pirahã usada neste livro”, que antecede as três partes. Nessa seção, o autor descreve de forma simplificada princípios da pronúncia do pirahã usando uma linguagem acessível para não especialistas. A porção final da obra conta ainda com o Epílogo, intitulado “Por que se preocupar com outras culturas e línguas?”, seguido pelas seções “Agradecimentos”, “Referências”, e “Índice Remissivo”.
A primeira parte, “Vida”, traz experiências que enfocam o modo de viver, a cultura e a organização em sociedade dos pirahãs. Everett narra experiências pessoais envolvendo a sua família e a comunidade Pirahã, que vão desde o estado crítico de saúde da filha e da esposa quando contraem malária até momentos de tensão entre a família norte-americana e os indígenas. Everett também comenta sobre as suas observações acerca da relação dos pirahãs com artefatos e outros bens materiais, suas práticas de rituais simbólicos, e retrata ainda a relação entre os Pirahãs e a natureza, em especial com o rio. Sobre a organização em sociedade, o autor discorre sobre a atribuição de funções dentro do corpo social a partir do gênero e sobre a vivência das diferentes fases da vida - os pirahãs prezam por indivíduos autônomos e resilientes, de forma que atitudes tomadas na criação das crianças seriam imediatamente condenadas em nossa sociedade. Em diferentes pontos, encontramos fotos em preto e branco retratando cenas da aldeia e paisagens da Amazônia. O primeiro capítulo recebe o título de “Descobrindo o mundo dos pirahãs” e é certamente uma introdução apropriada aos capítulos que se seguem. Everett narra sua chegada na aldeia, sua perspectiva de atuação como missionário naquele ambiente e também descreve o dia a dia de seu trabalho como linguista. Para que fosse possível traduzir textos bíblicos para a língua pirahã, Everett precisa coletar, armazenar e analisar dados dessa língua. Mas como fazer isso? O passo mais elementar é observar o mundo ao redor: Everett indica um pedaço de pau e um dos pirahãs nomeia o objeto, “Xií”, pau; em seguida o deixa cair, e o pirahã enuncia “Xií xi bigí káobíi”, pau caiu chão. A tarefa do pesquisador se complexifica ao longo do tempo - por exemplo, como entender elementos puramente gramaticais (como que, mas ou então) se não podemos apontar para essas entidades no mundo?
É daí que nasce a segunda parte da obra - “Linguagem”. Constituída por cinco capítulos, o primeiro deles é bastante ilustrativo da faceta linguística do trabalho de Everett. “Mudando os canais com os sons pirahãs” traz o contato do pesquisador com a fala de assobio, usada pelos homens Pirahã durante a caça - nesse contexto o assobio serve como canal para a comunicação. Everett vê nisso indícios para afirmar que é a cultura que influencia a língua (esse é um ponto debatido por estudiosos, e há quem defenda o contrário: é a língua que influencia a cultura). Já no segundo capítulo, “Palavras pirahãs”, o pesquisador parte de um incidente ocorrido com o seu barco para falar sobre o meticuloso processo de depreender o léxico (o conjunto de palavras da língua) e descrever a gramática pirahã. Ao estudar as palavras, mais uma vez Everett advoga em favor da ideia de que a cultura determina aspectos da língua. Para ele, o pirahã mostra que não apenas o significado das palavras é resultado de um processo cultural, mas os próprios sons usados para vocalizar uma
palavra, se assobiada ou cantarolada, por exemplo, também podem ser determinados pela cultura. No decorrer dos cinco capítulos, o autor relata vivências na Amazônia e relaciona cada uma delas com seu trabalho na descrição do pirahã usando uma linguagem extremamente acessível para tratar de conceitos linguísticos. Dessa forma, mesmo leitores sem formação na área de Letras podem compreender os frutos das investigações de Everett.
Os desdobramentos do trabalho de Everett na descrição da língua produziram grandes controvérsias no campo da linguística. Vale mencionar que o autor obteve o título de Doutor em Linguística pela Unicamp em 1983, ou seja, com a imersão na Comunidade Pirahã, o norte-americano não se torna apenas um falante proficiente na língua, mas também faz desse idioma o seu grande objeto de estudo. Os argumentos defendidos por Everett a partir de seus estudos desafiaram concepções sobre a linguagem advindas da linguística gerativa. Esse modelo, representado pela figura do pesquisador Noam Chomsky e desenvolvido por seguidores no mundo todo, nasceu nos anos 1950 nos Estados Unidos e rapidamente adquiriu uma relevância notória no estudo das línguas humanas. Em linhas gerais, a teoria gerativa vê a recursão como a peça fundamental para a habilidade humana de usar a linguagem, de forma que esse mecanismo deve estar presente em todas as línguas do mundo. Recursão pode ser definida como a capacidade de encaixar um item dentro de outro de mesma natureza de forma potencialmente infinita. Quando você olha no espelho e vê uma sequência infinita de espelhos no reflexo, isso é um exemplo de recursão. Na língua, a forma mais fácil de perceber a recursão é através de frases como a chave que eu perdi. Repare que não estamos falando de qualquer chave, mas da chave perdida por mim, e que podemos usar o que para encaixar nessa frase muitas outras a chave que eu perdi que abria a porta da casa que fica na esquina de forma potencialmente infinita. Everett, por outro lado, se mostra convencido de que isso não é possível na gramática do pirahã, de forma que a recursão não estaria presente nessa língua. No livro, o autor parece reconhecer a contenda e não deixa de se posicionar, em especial no capítulo “Recursão: a linguagem como uma boneca matrioska”, em que o autor mais uma vez advoga a favor da cultura como peça fundamental para a compreensão da gramática de uma língua. Segundo ele, deve-se “tentar compreender a linguagem em uma situação tão próxima quanto possível do contexto cultural” (Everett, 2024, p. 315) - relação essa que é desconsiderada pela teoria gerativa.
Por mais que não caiba nesta resenha mencionar os pormenores dos conflitos acadêmicos que envolvem defensores das ideias de Everett de um lado e de Chomsky do outro, o debate acalorado é por vezes o que mais se menciona entre os linguistas sobre o extensivo trabalho de campo de Everett no Brasil. Da mesma forma, a incursão de um missionário norte-americano que aprendeu uma língua indígena amazônica e teve o curso de sua vida alterado pela convivência com a comunidade Pirahã é desconhecida por grande parte dos brasileiros. Por isso, o esforço da Editora Vozes em publicar em português os relatos de Everett é louvável. Antes apenas disponível em inglês, os leitores brasileiros agora têm a oportunidade de acessar uma obra que congrega pontos pertinentes da história e da identidade de nosso país: colonização e conversão dos povos indígenas, riqueza linguística desses povos, organização social e cultural dos povos originários, entre vários outros. Como já mencionado, Everett usa uma linguagem acessível para o público leigo e traz relatos íntimos de suas próprias vivências para retratar as raízes culturais e linguísticas da comunidade Pirahã. Em tempos em que a divulgação científica é amplamente incentivada, essa obra não deixa de representar o esforço de um pesquisador para traduzir o conhecimento produzido e levá-lo para além da academia. Muito antes disso, Everett oferece uma oportunidade para refletir sobre o que nos torna humanos e sobre o que é ser falante de uma língua.
Melissa Lazzari é mestra em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul na linha de pesquisa Gramática e Significação. É licenciada em Letras Português/Inglês pela mesma universidade. Atualmente é aluna de doutorado na University of Calgary (CA).
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