Lições sobre ética
Por: Rafaella Silveira Sucupira da Costa
A publicação da 10ª edição de Lições sobre Ética, do influente filósofo Ernst Tugendhat (1930-2023), pela Editora Vozes, reafirma a contínua relevância de uma das obras mais importantes da filosofia moral contemporânea. Lançada originalmente em 1993, na Alemanha, como Vorlesungen über Ethik, esta edição, com 374 páginas, é fruto do trabalho de tradução de um grupo de doutorandos do curso de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob a orientação do professor Dr. Ernildo Stein. Considerado pelo próprio Tugendhat seu trabalho mais significativo no campo da ética, o livro, estruturado em 18 lições, é um convite à reflexão sobre os impasses das teorias éticas na atualidade.
Tugendhat foi um dos mais proeminentes filósofos alemães contemporâneos. Com uma trajetória intelectual admirável, foi aluno de Martin Heidegger (1889-1976), frequentou o círculo neoaristotélico de Joachin Ritter e concluiu seu doutorado, em 1956, com uma tese sobre as categorias aristotélicas. Posteriormente, foi professor catedrático em importantes instituições, notadamente na Freie Universität Berlin, da qual se tornou professor emérito em 1992. Seu campo de pesquisa abrange a filosofia da linguagem, a antropologia filosófica e a filosofia moral. Além de ter lecionado na Alemanha, também ensinou em países da América Latina, como Chile e Brasil. Ao longo de sua trajetória, publicou vários livros sobre diversos campos da filosofia. No Brasil, contamos, por exemplo, com as seguintes traduções: Lições introdutórias à filosofia analítica (Ijuí: Ed. Unijuí, 1992), Não somos de arame rígido (Canoas: Ulbra, 2002) e Lições sobre ética (Petrópolis: Vozes, 2025).
O objetivo de Tugendhat em Lições sobre Ética não é determinar os conteúdos normativos de uma moral absoluta, como se vê em abordagens tradicionais. Pelo contrário, o autor parte da constatação de que as justificações religiosas ou tradicionalistas já não são suficientes para fundamentar a consciência moral de todos, pois pressupõem uma fé que não é universal. Diante disso, ele busca justificar os juízos morais de uma forma distinta, oferecendo uma saída para o dilema em que a ética se encontra: a aparente escolha entre aceitar uma única fundamentação absoluta ou admitir que não há nenhuma. Este dilema, resultado de uma profunda desorientação ética, é o que Tugendhat pretende resolver. Sua posição é uma defesa à teoria que denominou contratualismo simétrico, por meio da qual investiga como podemos compreender e justificar as normas morais independentemente de premissas autoritárias. O desafio que o autor se coloca é responder à questão: “Como nós podemos justificar hoje uma moral?” (p. 13), ou ainda, “Como queremos, a partir de um ponto de vista imparcial, que todos se comportem?” (p. 325).
O percurso de Lições sobre Ética pode ser compreendido em quatro grandes movimentos. O primeiro é o diagnóstico do problema (lição 1), no qual o autor situa a crise da fundamentação moral no contexto pós-metafísico. Em seguida (lições 2 a 5), promove uma rigorosa análise conceitual, esclarecendo os termos do debate, como “bom” e “juízo moral” e propondo um conceito plausível de moral. O terceiro e mais extenso movimento é o diálogo crítico (lições 6 a 14), no qual ele se debruça sobre as principais respostas da tradição filosófica – com destaque à proposta de Kant –, avaliando seus pontos fortes e suas insuficiências. Por fim, a partir dessa análise, ele articula o quarto movimento (lições 15 a 18): a proposta reconstrutiva, apresentando sua própria teoria do contratualismo simétrico como uma alternativa mais viável para justificar a moralidade hoje.
Neste contexto, Tugendhat demonstra que a moralidade autônoma não pode se fundar em justificações autoritárias, que culminam em heteronomia, nem no contratualismo puro, que resulta em egoísmo. Em contrapartida, defende que seu contratualismo simétrico é uma alternativa plausível para fundamentar a moral na contemporaneidade, visto que se baseia no interesse recíproco de uma comunidade que visa o respeito mútuo. A originalidade de sua proposta consiste, portanto, na síntese entre a ampliação do modelo contratualista e a ressignificação do conceito kantiano de respeito universal, despido de sua roupagem metafísica.
A base de sua teoria é uma apropriação crítica do legado kantiano. Contudo, embora parta do princípio do respeito universal pelo ser humano, Tugendhat rejeita a premissa de Kant de que a moral se funda em uma lei absoluta da “razão pura”. Para ele, Kant apenas seculariza uma estrutura de autoridade religiosa (trocando Deus por uma faculdade abstrata, como já notara Schopenhauer), e uma moral verdadeiramente autônoma precisa se desvincular de tal imposição. É aqui que sua proposta se articula: ele resgata o respeito mútuo e o ancora em uma reciprocidade contratual, que nasce da decisão livre dos indivíduos. Essa decisão não se submete a autoridades externas nem ao cálculo de poder, mas ao interesse bem compreendido que todos têm em ser respeitados como iguais. Diferencia-se, assim, do contratualismo puro, que se baseia na razão instrumental, em vez de uma concepção de igualdade e simetria. Para construir sua teoria, Tugendhat estabelece um diálogo crítico com um vasto leque de tradições e autores, como: Aristóteles, Kant, Schopenhauer, Hegel, Habermas e Rawls. Partindo da análise dessas concepções, ele cunha sua própria teoria. Sua principal contribuição, portanto, é oferecer uma alternativa robusta às propostas autoritárias de fundamentação moral.
Independentemente da conclusão do leitor quanto a questão se Tugendhat respondeu de forma satisfatória ao ambicioso problema que ele se colocou, a leitura de Lições sobre Ética é uma jornada intelectual incontornável para profissionais e estudantes de Filosofia, Direito, Ciências Sociais, Psicologia e Relações Internacionais, bem como para qualquer cidadão interessado em refletir sobre as bases da convivência justa na atualidade. Em um momento em que debates sobre eutanásia, aborto, direitos dos animais e a responsabilidade para com as gerações futuras exigem fundamentos claros, o livro oferece ferramentas conceituais indispensáveis para uma reflexão séria e honesta sobre os limites do julgamento moral em uma sociedade diversa e plural. Nesse contexto, a proposta de um contratualismo simétrico se configura como uma robusta teoria moral e, talvez, como um antídoto plausível ao amoralismo e às posições autoritárias que ameaçam invadir o domínio público.
Além da brilhante reflexão de fundo, um dos pontos altos da obra é sua estrutura em “lições”. Essa metodologia torna a densa problemática abordada mais acessível, especialmente para estudantes de filosofia ainda não familiarizados com todos os meandros da tradição ética, sem comprometer a profundidade da análise. Mais do que um recurso didático, essa divisão expressa o modo como Tugendhat compreendia a própria tarefa de filosofar. Ao contrário de um percurso meramente histórico, o autor promove um diálogo constante entre as concepções clássicas e os problemas contemporâneos, demonstrando na prática sua convicção de que a filosofia só tem sentido quando se volta para as questões do presente. Assim, Lições sobre Ética não apenas nos ensina sobre filosofia moral, mas nos oferece a oportunidade de observar, em ação, o método de um dos mais rigorosos pensadores do nosso tempo.
Rafaella Silveira Sucupira da Costa é doutoranda do Curso de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6063280280258051. ORCID: https://orcid.org/0009-0003-9887-8208. Contato: rafaellasilveir@hotmail.com.
Referência bibliográfica
TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética. Petrópolis: Editora Vozes, 2025.
TUGENDHAT, Ernst; SOUZA, José Crisóstomo de. Ensino e prática de filosofia na Universidade segundo Ernst Tugendhat. Philósophos – Revista de Filosofia, Goiânia, V. 9, N. 2, p. 323-343, 2008. DOI: 10.5216/phi.v9i2.3380. Disponível em: «https://revistas.ufg.br/philosophos/article/view/3380/3284». Acesso em: 12 ago. 2025.
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