A justiça de Afrodite

Por: Bráulio Porto

 

Originalmente apresentada como uma palestra em setembro de 2007, na Certosa di San Giacomo da ilha italiana de Capri, A Justiça de Afrodite, de James Hillman, ganha finalmente sua tradução brasileira.

Se o autor já havia criticado o lugar marginal relegado à deusa na nossa civilização, em seu clássico artigo Loucura Cor-de-Rosa, ou por que Afrodite Leva os Homens à Loucura com Pornografia? de 1995, desta vez sua proposta é a de revisar as bases fundamentais da psicologia em torno de três princípios: Destino, Beleza e Justiça.

Explorando de modo pormenorizado os dois últimos temas, Hillman instiga o leitor a imaginar uma psicologia que convide Afrodite no desenvolvimento de sua teoria e prática, dado que teimam em ignorar a aspiração humana não somente por amor, mas sobretudo pela beleza. Ele compreende aquilo que denomina “uma relação infeliz” entre esta dimensão e a psicologia como o resultado de um problema mais profundo da cultura ocidental, relacionado ao dilema que dissocia a beleza da bondade e da verdade.

Esta longa tradição do pensamento teria apartado a estética da ética, a Justiça da Beleza, de tal maneira que tornou impossível pensar em algo que seja belo e bom, atraente e ético, ou que possa conceber os prazeres dos sentidos como uma via para a verdade. Corrigindo esta falha, o texto convoca a mente psicológica da Grécia clássica como modelo para evidenciar o que denomina de não separação entre o amor ou a beleza do excesso, a alegria da tragédia e o florescimento da morte.

Hillman aponta para a dominância de um controle racional nas investigações filosóficas que promove pouco espaço ao amor, analisado unicamente em termos dos estudos das emoções ou da moral. Reduzido à fisiologia ou à teologia, o amor se tornaria algo diverso da beleza, espécie de imperativo moral que trai sua natureza impulsiva. Já a beleza, se não inteiramente ignorada, permaneceria cindida entre a epistemologia da sensação ou a teoria estética, cabo de guerra que rouba seu poder de persuasão no impulsionamento do coração em direção ao amor e à justiça.

Como evidência da cisão entre estética e ética como campos de estudos distintos, o autor aponta para a distância entre os espaços de atuação da filosofia moral e do direito, reduzidos ao literalismo dos fóruns e tribunais, e as galerias de arte e salas de música nas quais a apresentação da beleza é soberana. A entrada de Afrodite requereria uma revisão radical da nossa visão de mundo, por propiciar a combinação entre a Beleza e a Justiça.

No incessante movimento de re-visão da sua psicologia, Hillman propõe a dissolução entre as barreiras erigidas entre o ético e o estético. Ele afirma que “a atenção à estética é um comportamento ético e o comportamento ético é uma manifestação estética”, em um mundo que não se reduziria a ser um problema a se resolver, mas acima de tudo se constituiria como um espetáculo a ser apreciado.

Diante da fenomenologia que cerca a figura de Afrodite, a questão da complicação como método de uma inteligência renascentista é apreciada na forma de uma ferramenta de intensificação de sua complexidade. Aqui, a clareza das distinções aleijaria seu poder estético ou poético, dado que a confusão da imaginação se caracterizará como um elemento definidor fundamental.

Enquanto uma designação arquetípica de beleza, referente ao que chama de “intensificação divina das coisas terrenas”, Hillman reconhece a presença do brilho dourado e o sorriso de Afrodite, para cuja intensidade estética se sobrepõe também uma força moral, necessária de ser reconhecida e respondida. Trazendo a beleza contida nas imagens oníricas como a contribuição humana ao cosmos venusiano, seu entendimento é de que mais além da busca de sentido para servir à vida, o que se pede é a imersão e reação às mesmas enquanto eventos estéticos.

 

 

 


Bráulio Porto é psicanalista junguiano de crianças, adolescentes e adultos pelo C.G. Jung Institut-Zürich, Suíça. Membro da International Association for Analytical Psychology – IAAP. Graduado e Mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo – USP. Especialista em psicologia analítica junguiana pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Membro fundador do Instituto Mantiqueira de Psicologia Arquetípica – IMPAR. Doutorando em psicologia na Universidade de São Paulo – USP.