10 lições sobre Maria Isaura Pereira de Queiroz
Por: Lucas Correia Carvalho
O livro “10 lições sobre Maria Isaura Pereira de Queiroz” apresenta ao público a riqueza e a atualidade de uma das intelectuais mais originais da sociologia brasileira. Em linguagem acessível, mas teoricamente rigorosa, a obra recupera aspectos fundamentais da trajetória e do pensamento de Maria Isaura, revelando uma autora comprometida com a observação minuciosa da realidade social e com a construção de interpretações que articulam teoria e empiria.
Além de sua importância analítica, o livro destaca a trajetória de Maria Isaura como mulher pioneira na universidade brasileira. Em um campo ainda marcado pela desigualdade de gênero, ela consolidou uma carreira acadêmica de projeção internacional, dirigiu centros de pesquisa, participou ativamente da SBPC e foi a primeira mulher a receber o título de professora emérita da USP, além de ter sido agraciada com o prêmio Jabuti. Sua trajetória desafia as expectativas de gênero de sua época e inspira novas gerações de pesquisadoras e pesquisadores comprometidos com a ciência social crítica e enraizada na realidade brasileira.
Organizado em dez capítulos temáticos, o livro não apenas sistematiza as principais contribuições da socióloga paulista - como suas análises sobre o mundo rústico, o mandonismo local, a estrutura de parentela, a estratificação social e os movimentos messiânicos -, mas propõe uma leitura renovada de sua obra à luz dos desafios contemporâneos. Ao fazê-lo, mostra como Maria Isaura soube captar, com agudeza singular, os processos de integração e desorganização social em tempos de mudança acelerada, sem jamais ceder a visões simplistas ou deterministas.
A força de sua obra reside também na sua atenção a um Brasil em plena transformação. Escrevendo entre os anos 1950 e 1970 - período de intensas mudanças sociais, marcada por acelerada urbanização, industrialização e deslocamentos populacionais -, Maria Isaura soube enxergar tanto as forças emergentes quanto os elementos de continuidade da vida social. Sua sociologia não estava a serviço de mitos progressistas nem de nostalgias conservadoras: ela via nas formas de organização das classes populares, especialmente no mundo rural, um terreno fértil para compreender os limites e as possibilidades de rotas mais democráticas de mudança social.
Embora tenha se dedicado principalmente ao estudo das populações rurais, Maria Isaura nunca as tratou como um mundo à parte. Ao contrário, considerava que nelas se condensavam experiências sociais decisivas para interpretar o conjunto da sociedade brasileira. Suas pesquisas sobre os “bairros rurais” e, sobretudo, sobre a estrutura de parentela - uma forma de organização social baseada em laços de parentesco, compadrio e obrigações mútuas — ofereceram uma chave interpretativa poderosa para compreender os modos de integração social em um país que se urbanizava rapidamente. A estrutura de parentela, segundo a autora, não era apenas um resquício do passado, mas um princípio ativo de ordenação das relações sociais que, mesmo em transformação, continuava a influenciar as formas de poder, de mobilidade e de solidariedade nas novas configurações urbanas. Desse modo, a modernização brasileira, em vez de romper com o passado, muitas vezes o reelaborava por meio de instituições e vínculos enraizados no mundo rústico.
Um dos diferenciais da obra é sua atenção à forma como Maria Isaura concebia o trabalho sociológico. Para ela, era preciso “observar antes de interpretar” - uma máxima que guiava sua postura metodológica e ética frente à pesquisa. Ao privilegiar estudos de caso e investigações de campo, ela não se limitava ao retrato de comunidades específicas, mas buscava compreender nelas os traços mais profundos da sociedade brasileira em suas múltiplas escalas. Essa capacidade de transitar entre o micro e o macro, entre o plano empírico e o estrutural, é uma das marcas centrais de sua sociologia.
Sua análise da dominação política, por exemplo, lançava luz sobre o papel do plano local como núcleo estruturante do poder no Brasil. Ao investigar o mandonismo e o coronelismo, Maria Isaura mostrou como a política brasileira se constituiu a partir de relações de poder capilarizadas, muitas vezes sustentadas por laços familiares, compadrio e redes de favores. Mas, ao mesmo tempo, sua obra revelou que essas estruturas de dominação estavam longe de ser homogêneas ou estáticas: elas se transformavam conforme os modos de organização das populações camponesas, a emergência de novas lideranças e a reorganização dos vínculos sociais nos contextos de crise.
É nesse ponto que suas investigações sobre formas de ação coletiva ganham relevo. Maria Isaura foi uma das primeiras a estudar os movimentos messiânicos como expressões de tensões sociais profundas. Longe de tratá-los como manifestações irracionais ou meramente religiosas, ela os compreendia como tentativas de resposta coletiva a situações de exclusão e desestruturação. Nessas experiências, enxergava uma criatividade social que desafiava os limites impostos pelas camadas dominantes e abria brechas para novas formas de organização, resistência e pertencimento.
Essa sensibilidade se estendia também às análises sobre mobilidade social. Em seus estudos sobre a estratificação no Brasil rural, Maria Isaura não perdia de vista os bloqueios estruturais que impediam a ascensão de certos grupos, mas também não ignorava as rotas possíveis de mobilidade, como o acesso à terra, a valorização do prestígio pessoal e a construção de redes de apoio baseadas em solidariedade vicinal. Para ela, as trajetórias sociais eram marcadas tanto por constrangimentos quanto por agência, e a compreensão sociológica deveria dar conta dessa tensão.
“10 lições sobre Maria Isaura Pereira de Queiroz” busca ser um convite para conhecer uma obra vasta, densa e surpreendentemente atual, que ajuda a pensar o Brasil em suas continuidades e rupturas. Ao apresentar ao público temas como a dominação política e o plano local, formas de ação coletiva e possibilidades de mobilidade social, o livro também permite que novas gerações descubram em Maria Isaura uma interlocutora potente para compreender as complexas tramas da sociedade brasileira - ontem e hoje.
Lucas Correia Carvalho é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre e doutor em Sociologia pela mesma universidade. Atualmente, é professor da Universidade Federal Fluminense e um dos coordenadores do Comitê de Pesquisa de Pensamento Social da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). Desenvolve pesquisas nas áreas de Pensamento Social no Brasil e Sociologia da Ciência.
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