Enciclopédia Mulheres na Filosofia

Por: Carmel Ramos

 

A prática do compêndio de mulheres doutas remonta a exemplos na história do pensamento: Christine de Pizan propõe um à sua maneira em A Cidade das Damas, de 1405, tanto quanto a mexicana Sor Juana Inés de la Cruz e o erudito moderno Gilles Ménage – este último que procura, no século XVII, enumerar e apresentar as pensadoras da Antiguidade grega em seu História das mulheres filósofas.

Ecoando sem propriamente subscrever os esforços mencionados, a empreitada da Enciclopédia Mulheres na Filosofia, organizada por Carolina Araújo, Yara Frateschi e Halina Leal, publicada em livro em 2024 pela Editora Vozes, busca recuperar e dar visibilidade a nomes e ideias apagadas da historiografia filosófica tradicional. Faz parte do escopo do projeto, é claro, questionar a ideia mesma de ilustração – na medida em que esta parece evocar a sacralidade da filosofia e seu consequente afastamento do mundo. Não se trata, aqui, de contestar o cânone atual – imagem dos homens geniais do passado – a fim de substituí-lo por um outro, mas sim de tornar a forma como a filosofia é narrada em contextos acadêmicos ou não mais “rigorosa, plural e inclusiva”[1]

O livro é resultado de um projeto de catálogo virtual, cujo contexto tem de ser remetido a diversas iniciativas conjuntas. Desde ao menos 2016, no Brasil, no interior de um movimento retrospectivamente nomeado de Primavera das Filósofas, pesquisadoras e pesquisadores vêm denunciando a extrema desigualdade de gênero na carreira acadêmica na área. Mulheres estão presentes nos cursos universitários de Filosofia, sobretudo na graduação. À medida em que a carreira vai progredindo, porém, também progride seu desaparecimento. Segundo um estudo publicado em 2019 por Carolina Araújo, mulheres têm menos chance de permanência na carreira. Vergonhosamente, há, ainda hoje, programas de pós-graduação sem filósofas em sua composição.

Este não é, em todo caso, um debate estritamente restrito à profissão em seus desdobramentos institucionais. Podemos nos perguntar, com razão, pelas causas dessa ausência – elas se revelarão às vezes filosóficas, às vezes extrafilosóficas. 

Algumas das razões extrafilosóficas são, entre outras, a própria estrutura excludente da cultura. Como pontuam as editoras na excelente introdução da obra – documento de reflexão metodológica e política tão relevante quanto os verbetes que compõem a coletânea –, fatores como um acesso deficiente à educação, falta de tempo para se dedicar ao estudo, tempo este sequestrado seja pelo trabalho doméstico, seja pelas tarefas associadas ao cuidado – Elisabeth da Boêmia, filósofa seiscentista, confia a Descartes o fato de ter sido interrompida sete vezes ao tentar redigir uma carta, por exemplo –, o casamento, responsável por frequentemente confinar a mulher a uma vida afastada da especulação e do diálogo com pares: tudo isso parece contribuir para impedir a escrita e difusão de seu pensamento. 

Ora, mas há também razões internas à filosofia que podem ser aqui evocadas. O ensino da filosofia ainda se move nos contornos limitados do cânone, que reproduz vieses racistas, sexistas e eurocêntricos. Para recuperar uma classificação hegeliana, a história da filosofia ainda é perpetuada como a galeria dos heróis da razão pensante. A obra propriamente filosófica ainda é reconhecida como prioritariamente tratadística, o argumento legítimo é remetido à sua existência numa arquitetônica sistemática, há temas autorizados e desautorizados à reflexão e, enfim, certa subjetividade de gênio obstruem a incorporação dos trabalhos de filósofas nas discussões, especializadas ou não. Há um retrato muito bem definido, construído ao longo da história, que associa a figura do filósofo ao homem. Como lembra Marie de Gournay, filósofa moderna, mulheres são ordinariamente reconduzidas à sua situação de gênero quando pretendem intervir em domínios intelectuais: são sempre lembradas de que é uma mulher que fala.

Procurando, então, questionar evidência do cânone, o projeto da Enciclopédia – fundado em 2020 e alimentado com persistência desde então – agrupa verbetes breves em que a vida, a obra e os principais argumentos de filósofas dos diversos períodos históricos e pertencimentos geográficos são solidamente apresentados por especialistas. Nos verbetes, o problema metodológico – formas textuais associadas à produção literária, dificuldade de acesso à bibliografia primária, escassez de traduções – é também abordado, mostrando que o expediente da história feminista da filosofia é igualmente uma pergunta radical pela definição da mesma.

Dividida segundo os quatro períodos históricos – Antiguidade, Medievo, Modernidade e Contemporaneidade –, a coletânea enfatiza a pluralidade formal e conteudística dos trabalhos produzidos por filósofas. Suas produções, fixadas em cartas, diários, fragmentos, romances, poemas – gêneros associados à privacidade e à domesticidade e, dado seu caráter de singularidade, historicamente destituídos de valor conceitual –, veiculam ideias originais nos mais variados domínios da reflexão: a epistemologia, a ética, a lógica, a filosofia política, entre outras. A pesquisa registrada no livro é, portanto, comprovação de que sempre houve mulheres filósofas elaborando noções originais, mas que certa concepção de filosofia foi consolidada exatamente a partir de sua exclusão.

Com sua concretização em livro, a leitora e o leitor terão acesso a um material imprescindível ao “ensino, pesquisa e extensão”[2] da filosofia tanto quanto a um referencial teórico confiável para navegar na história da filosofia com mais consistência e prazer.

           

 


Carmel Ramos é pesquisadora de Pós-doutorado na UERJ. Mestre e doutora em Filosofia pelo PPGLM/UFRJ. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e da FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, Processo SEI-260003/005791/2022. E-mail: ramoscarmel@gmail.com.

 


[1] P. 7.

[2] P. 7.