A crise da narração
Por: Daniel Guilhermino
Viver é narrar. Se a narração está em crise, então é a vida que está em crise.
Mas que crise é esta, que serve como fio condutor para as análises tão agudas de Byung-Chul Han sobre a sociedade moderna em A crise da narração?
Esta sociedade moderna é caracterizada pelo autor como sociedade da informação. Informação é, para Han, o exato oposto de narração. Quando narramos uma sequência de acontecimentos ou quando contamos uma história, o que está em jogo é a coesão do que está sendo narrado, a vinculação dos eventos, o desfecho da história. O ser humano como animal narrans vai se valer desse poder da narrativa para vincular, ordenar e dar sentido para os acontecimentos da vida que, à primeira vista, parecem totalmente caóticos, absurdos e sem sentido. Essa ausência de sentido da vida, essa impressão de que a vida nada mais é que uma sequência arbitrária e caótica de acontecimentos, é capturada por Han pelo termo contingência. A narração busca, portanto, retirar o caráter contingente da vida, oferecendo-nos proposta de orientação e de sentido para viver. Nos dizeres do autor, “quando estamos no meio da tempestade de contingências, somos infelizes” (p. 44).
A narração estabiliza a vida. E a vida moderna é, precisamente, uma vida instável: vivemos em meio ao bombardeio de informações que, ao contrário da narração, são fragmentárias e, portanto, desestabilizadoras. Vivemos, além disso, segundo a lógica da eficiência, lógica incompatível com o espírito da narração, já que este exige um estado de ânimo calmo e contemplativo. A narração é, também, capaz de estabelecer vínculos efetivos entre as pessoas, criando comunidades autênticas. Contudo, não possuímos mais a disposição para ouvir, e isso porque vivemos em constante estado de tensão espiritual, faltando-nos justamente a distensão psíquica para escutar atentamente. Mergulhados no mundo interno do nosso smartphone, não temos mais paciência para o outro. Por isso a vida moderna é, segundo o autor, uma vida desnarrativizada, uma vida que fragmenta e isola, na contramão de uma vida narrada, que vincula e cria uma identidade e uma comunidade. O animal narrans cedeu seu lugar ao Phono sapiens: não se trata mais da vida narrada e plena de sentido, mas de uma vida baseada nos estímulos caóticos e fugazes das mídias digitais. A digitalização do mundo da vida acentua e agrava essa impressão de ausência de sentido e do absurdo dos acontecimentos. Uma vida baseada nas relações vazias de postar, curtir e compartilhar não é uma vida verdadeiramente partilhada. E é a narração, segundo Han, que pode servir como antídoto para esse frenesi de atualidade, para essa falta de vínculos efetivos e estáveis dessa nossa sociedade a um só tempo cansada e ansiosa.
Mas faz sentido falar de uma crise da narração na era do storytelling? Segundo Han, o storytelling é tudo, menos uma narrativa. Falta-lhe todos os elementos característicos de uma narrativa: o poder de oferecer articulação, estabilização, orientação e apoio à vida. O storytelling é, na verdade, uma instrumentalização da narrativa, com vistas à sua comercialização. Não cria uma comunidade efetiva, como pode criar uma narração, mas apenas uma “community” de consumidores. O storytelling, na verdade, é muito mais próximo da informação, dado seu caráter efêmero, arbitrário e consumível. O storytelling é muito utilizado no marketing, por exemplo, criando histórias para nos convencer a consumir determinado produto. Já a autêntica narrativa deve nos aproximar da vida mesma, e não da vida em forma de mercadoria.
É a origem dessa crise narrativa que Han nos apresenta neste livro. E isso é exposto com a agudeza característica das análises do autor, com seu olhar atento para a vida moderna, na qual vivemos cada vez mais distantes da presença do real e mais próximos da virtualidade do digital, o que nos torna agitados, ansiosos, isolados e desorientados. Mas não se trata apenas de uma radiografia da vida moderna: a crise da narração é analisada à luz de referências filosóficas, artísticas e literárias, tais como Walter Benjamin, Jean-Paul Sartre, Peter Handke, Marcel Proust, Hannah Arendt, dentre outros. Além disso, Han realiza uma fina costura de sua investigação com instigantes insights sobre psicanálise, política e teoria social.
Um livro curto, mas denso. Um livro que nos mostra o desconforto de estarmos muito bem-informados, mas desorientados. Que escancara os riscos da agitação da vida moderna. Mas que, por outro lado, oferece-nos o vislumbre de uma possível cura: “somente a narração desvela o futuro, somente ela nos dá esperança” (p. 41).
Daniel Guilhermino é formado em filosofia pela UFJF, mestre em filosofia pela USP e doutorando em filosofia pela USP. Atua em linhas de pesquisa de filosofia moderna e contemporânea, com ênfase na fenomenologia de Edmund Husserl. Foi pesquisador visitante nos Arquivos Husserl de Lovaina e na Universidade Carolíngia de Praga. Pela Editora Vozes, traduziu “Shanzhai: desconstrução em chinês” e “A crise da narração”, ambos de Byung-Chul Han, e é um dos tradutores de “Psicologia fenomenológica e fenomenologia transcendental – textos selecionados (1927-1935)”, de Edmund Husserl.
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