Punição e sensibilidade moderna - Dos suplícios ao abolicionismo carcerário

O livro do professor Luciano Oliveira (UFPE), Punição e sensibilidade moderna, apesar de relativamente pequeno (apenas 136 páginas), tem um subtítulo que dá conta das ambições do autor: Dos suplícios ao abolicionismo carcerário. Isso quer dizer que o livro propõe uma viagem que começa no século XVIII, quando os castigos corporais eram a forma dominante de pena, e chega até as primeiras décadas do século XXI, quando novos reformadores penais propõem a abolição da prisão (que substituiu os suplícios) como forma de punição dominante. 

Adotando o ensaio histórico como gênero, e como estilo uma prosa leve e agradável (e, coisa rara em quem vem da academia, compreensível), Luciano Oliveira deixa de lado as grandes explicações de tipo “estrutural” para as mudanças que se deram no direito penal nos dois últimos séculos e, na contramão das explicações sociológicas e históricas mais convencionais, sustenta que elas foram impulsionadas pelo que ele chama de “sensibilidade moderna”. Para o autor, as mudanças não teriam se dado sem que tivesse havido uma mudança na opinião pública (ou da “opinião pública esclarecida”, como ele prefere dizer), capaz de impulsionar as mudanças que ocorreram e que continuam fazendo seu percurso. Para isso, adota uma perspectiva ligada à chamada “história das mentalidades”, da qual já se disse – invertendo a famosa tópica marxista de uma base material sobre a qual se ergue todo um edifício ideológico – que sua démarche se transferiu da base econômica para a superestrutura cultural, ou seja, “do porão ao sótão”, como já foi dito anedoticamente.

Tomando como ponto de partida Jean-Jacques Rousseau e o conceito de “piedade” (ou seja: “uma repugnância inata em ver sofrer seu semelhante”), Luciano Oliveira mobiliza desde autores clássicos como Tocqueville no século XIX e Norbert Elias na primeira metade do século XX, até autores contemporâneos pouco conhecidos no Brasil como Pieter Spierenburg, John Langbein e John Pratt em favor de sua tese. O livro, rico em dados históricos e sociológicos, faz uma viagem longa, abrangendo mais de dois séculos, fazendo o leitor partilhar a experiência das sociedades ocidentais – entre as quais ele inclui o Brasil – no que diz respeito aos crimes e às formas legítimas de punição.

Num capítulo especialmente dedicado à prisão, o autor examina o que considera um “enigma”. De um lado, a criminalidade violenta é hoje em dia um fenômeno “normal” no cotidiano das sociedades modernas e as cadeias estão superlotadas mundo afora. De outro, que soluções têm sido adotadas para resolver o problema? Superlotar as cadeias ainda mais? Construir mais prisões? Essas são as repostas habitualmente dadas pelo senso comum e adotadas pelos governos. Mas a prisão vem sendo denunciada como um “fracasso” desde a época do seu aparecimento. Por que então persiste como a “rainha das penas”? Por que, em seu lugar, não se adotam, por exemplo, os castigos corporais de antigamente? Diferentemente do encarceramento, que é caro e tem o inconveniente de reunir um grande número de criminosos num mesmo estabelecimento, os castigos corporais são baratos e podem ser dosados com precisão. Mas essa hipótese é sequer mencionada pelos punitivistas mais duros. Por quê?

Para o autor, a explicação para esse “enigma” reside da tese que defende ao longo do livro: no mundo moderno, vigora uma “sensibilidade” que já não suporta os espetáculos de sofrimento físico, como ainda era corrente há pouco mais de duzentos anos. Num outro exemplo, o autor arrola também a pena de morte mediante enforcamento em praça pública que num país como a Inglaterra, até meados do século XVIII, era aplicada até em casos de furto com uma prodigalidade insuportável para os padrões de hoje. É como se a prisão, na impossibilidade de se restabelecer o açoite, ou de se enviar para a forca pequenos ladrões, permanecesse como a “rainha das penas” par défaut. Ousado e original, trata-se de um livro de história e de sociologia e, ao mesmo tempo, de uma vigorosa defesa do humanismo das Luzes tão maltratado pelos diversos pensamentos “críticos” contemporâneos.