Metamorfoses da participação no Brasil
Por: Maria da Glória Gohn
O livro Metamorfoses da participação no Brasil: Coletivos Periféricos Urbanos, Povos Indígenas, Juventudes Autonomistas e Conselho de Participação Social da República é resultado de pesquisas sobre mudanças na sociedade e na política no Brasil, em relação as modalidades de participação em formas de associativismo civil, Busca compreender a tensão e a polarização que atualmente divide o país. As formas de participação são agrupadas em oito categorias nas últimas décadas nomeadas como participação: comunitária, popular, sociopolítica e cultural, cidadã, globalizada, político-social e cultural das juventudes, conservadora e/ou autoritária, participação empreendedora e social institucionalizada. Essas modalidades não são uma sequência linear e evolutiva, cada uma tem características de seu tempo, foram se transformando, metamorfoseando-se e gerando outras que afetam a subjetividade e a identidade dos sujeitos em cena.
O livro é composto por cinco capítulos. O primeiro aborda das características de cada modalidade de participação e analisa a participação institucionalizada no Conselho de Participação Social do governo federal (2023-2025). O segundo apresenta no cenário econômico, político social e religioso no Brasil atual, indicadores que possam explicar possíveis causas e impactos nas formas associativas civis e no processo democrático brasileiro. São analisados na conjuntura nacional três áreas: trabalho, religiosidade e segurança pública.
Os três capítulos seguintes focalizam grupos de ações coletivas que exemplifiquem as formas de participação mencionadas acima, a saber: no capitulo 3, seleciona-se uma comunidade periférica, na favela de Paraisópolis em São Paulo, para o estudo da participação comunitária no passado e a participação popular e empreendedora na atualidade - com as novas redes de sociabilidade construídas nas inúmeras oficinas de costura solidárias, cozinhas comunitárias, centros de recreação e produção cultural, escolas de arte etc. Essas redes surgiram de coletivos periféricos, ou deram origem aos mesmos
O capítulo 4 retrata os povos indígenas e sua participação sociopolítica e cultural. Faz-se um resgate da história de suas lutas em dois momentos importantes para a conquista e garantia de seus direitos: O primeiro, nas décadas de 1970-1980, na fase da ditadura militar e na Constituinte, construção do principal instrumento jurídico do país, quando os indígenas obtêm um capítulo específico na Constituição Brasileira de 1988. O outro, em período recente, de muitas tensões e polarização política, de 2020 a 2025, quando o tema do Marco Temporal é colocado no campo das disputas por direitos de terras e territórios dos indígenas. Nos dois momentos os movimentos dos indígenas apresentam-se como lutas para existirem e resistirem, especialmente na Amazônia.
O quinto e último capítulo, focaliza ativismo de Coletivos Urbanos de Jovens, para a participação das juventudes e a participação globalizada, a partir de Junho de 2013, em busca de seu significado- para os jovens da geração das redes e mídias digitais e suas novas formas de associativismo, investigando seus valores, formas de organização, impactos e possibilidades. As manifestações de 2013 impactaram a sociedade e a agenda de governantes e até hoje há muitos enigmas a se decifrar.
Diferencial do Livro
Em primeiro lugar, o foco do olhar, a perspectiva metodológica adotada, a partir do associativismo na sociedade civil, e suas relações, impactos e efeitos sobre o Estado, governo, sociedade política em geral. Aborda ciclos de participação sociopolítica no Brasil objetivando resgatar a memória desses ciclos participativos, nomeando-os segundo seu tempo de irrupção na cena pública, não apenas pelo lado dos sujeitos/agentes em ação, ou dos repertórios de demandas em pauta; mas também os mediadores, e vários aspectos da vida cotidiana que impulsionam e explicam essas formas de sociabilidade. Em síntese, um olhar de baixo para cima, e a busca do que está por dentro, e suas conexões com o exterior.
Segundo, destaca a forma de participação em Coletivos na atualidade. Isso porque não basta tratar os movimentos sociais, sindicais, ONGs e outra formas de representação da sociedade civil nas esferas públicas, privadas ou estatais/governamentais. Essas ações são partes, mas não o todo, do universo das relações associativas, atualmente amplificadas com novas formas de comunicação, e redes sociopolíticas. Deve-se observar, interpretar e analisar também as formas não convencionais de participação, ativismo e de contestações sociais a exemplo de Coletivos, presentes nas favelas, nos povos indígenas e nos grupos de jovens em diferentes espaços, especialmente no urbano, assim como o grande número de mulheres.
Terceiro, nos territórios investigados dá-se destaque para as ações participativas indagando: como elas se apresentam na atualidade, o que há de novo, o que mudou, o que foi ressignificado, como são formuladas as identidades coletivas nos ambientes digitais, quais as pautas e agendas que construíram e como utilizam ou operam via as redes e mídias digitais. Aborda-se também como se relacionam nos últimos anos com outros setores da sociedade civil organizada, como partidos e sindicatos, e como interagem com os órgãos estatais e suas políticas públicas.
No âmbito das ações coletivas ganharam notoriedade na última década da sociedade brasileira pautas relacionadas aos Direitos Humanos em grupos sociais identitários que lutam pelo feminismo, antirracismo e LGBTQIA+, em movimentos e coletivos dos povos originários, destacando-se os povos indígenas e afrodescendentes; bem como demandas aos Direitos Sociais e Ambientais impactadas pelos efeitos das mudanças climáticas, especialmente na área da educação, saúde, saneamento básico, moradia, transportes, condições climáticas, segurança pública; e as demandas geracionais dos jovens e da população idosa que cada vez está vivendo mais, com novas necessidades. Ações contra e a favor de grupos de imigrantes também entraram na pauta. Registra-se também a emergência do ativismo de direita, a desinstitucionalização ou reestruturação da participação social institucionalizada; o desmantelamento e/ou a recriação de políticas públicas.
Disso resulta, na atualidade, uma pluralidade de formas de associativismo, uma ecologia de saberes acumulados, que se recriam cotidianamente por meio das experiências, diretas ou virtuais. E nessa pluralidade inclui os contramovimentos e os efeitos de seus atos antidemocráticos sobre a democracia. As formas de participação tratadas nos capítulos do livro, enfatiza o papel dos sujeitos das ações, com destaque para o papel das mulheres e dos jovens/juventudes.
Importância da Temática
Sabe-se que a última década tem sido marcada por contextos de múltiplas crises e conflitos em várias partes do globo, com a ascensão de governos conservadores, crescentes polarizações ideológicas, desastres climáticos, ambientais e ecológicos, aumento de desigualdades sociais, consequências devastadoras e desiguais após a pandemia da Covid-19, e diferentes guerras que tem impactado não apenas as nações diretamente envolvidas. Paralelamente observa-se tensões políticas e sociais que pressionam e desafiam as instituições democráticas na América Latina e no Mundo.
O livro busca contribuir com o debate sobre as temáticas emergentes ligadas às mudanças na sociedade contemporânea onde redes sociais e a comunicação digital assumem centralidade nas dinâmicas sociais, bem como os desafios teórico-analíticos e metodológicos no campo de estudos sobre ações coletivas que combinam formas de atuação tradicionais, digitais e híbridas. As experimentações tecno políticas criadas e as novas formas de sociabilidade e mentalidades geradas em ambientes digitais têm impactado processos políticos, econômicos, sociais e culturais, ao promover oportunidades de inovações no repertório da ação coletiva, nos modelos de organização na ação política mediados por plataformas e novidades nas estratégias de comunicação e ativismo.
As formas de participação civis têm operado mudanças nos valores, cultura política, práticas de engajamentos nas ações coletivas, estratégias de comunicação e relações quanto ao uso das tecnologias digitais, formas de ativismo e sociabilidade. Resulta disso uma nova configuração política conflituosa que perpassa a política institucional e invade a esfera da sociedade civil. Isso tem recolocado, no Brasil, as formas de ações coletivas em momentos de confronto político, cultural, ideológico, repressão, incertezas e ameaças, ao lado de formas novas de resistência e inovações sociopolíticas e culturais, gerando oportunidades emergentes, especialmente entre os jovens, que não vivenciaram as formas tradicionais e clássicas do passado (em partidos, sindicatos ou movimentos populares de base). Os caminhos da mudança social são construídos, reconstruídos e destruídos cotidianamente e, portanto, requer uma análise aprofundada dos diversos atores sociais, políticos e culturais em cena, identificando o sentido que estão atribuindo à crise e, a partir daí entender as possibilidades de força e potência, positivas e negativas, dos atores em cena- antigos e novos, progressistas ou conservadores.
Maria da Glória Gohn é doutora em Ciência Política pela USP e pós-doc em Sociologia pela New School University, Nova York. Professora titular da Faculdade de Educação da Unicamp e professora visitante sênior da UFABC. Pesquisadora CNPq 1A com ampla produção de artigos e livros. Em 2023 ganhou o Prêmio Florestan Fernandes da SBS.
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