Do Antigo Regime às Universidades, da Europa ao Mundo

Por: Rodrigo de Azevedo Weimer

*Resenha publicada na Revista História, Histórias – Volume 13, nº 29, edição de julho/setembro 2025

 

 

Nos últimos dois anos, vieram a público dois excelentes manuais universitários de História Moderna. Refiro-me aos livros “A Europa no Antigo Regime: uma visão plural”, escrito por Ronaldo Vainfas, e “A Época Moderna”, organizado por André de Melo Araujo, Andréa Doré, Luís Felipe Silvério Lima, Marília de Azambuja Ribeiro Machel e Rui Luís Rodrigues.1 A primeira obra é um esforço de síntese realizado por um autor que dedicou sua vida ao estudo da História Moderna; a segunda, mais extensa, e, assim, mais completa, uma coletânea de autoria de 35 historiadores e historiadoras do mesmo campo – dentre os quais o próprio Vainfas. Juntos, os dois trabalhos oferecem um panorama enriquecedor sobre o período comumente entendido como abrangente do Renascimento à Revolução Francesa. Ambos os livros também estabelecem discussões conceituais sobre periodização, trazendo às suas páginas o debate sobre termos como “Modernidade”, “Primeira Modernidade” e “Modernidade Tardia”, evidenciando que os “pedaços” com que os/as historiadores/as dividem seu material de análise2 não são isentos de polêmicas ou controvérsias – voltaremos a esse aspecto. Além disso, essa bibliografia é reveladora da profundidade e maturidade das pesquisas sobre História Moderna no Brasil, campo cujo desenvolvimento no país está devidamente mapeado e analisado na segunda obra. 

O livro organizado por Araújo, Doré, Lima, Machel e Rodrigues – resultante de uma rede de professores-pesquisadores modernistas, h_moderna – recupera as principais discussões historiográficas sobre os temas de seus capítulos, que abrangem grandes debates – como a emergência do capitalismo e do Estado Moderno (os autores do capítulo em questão rejeitam o termo “absolutismo”3, que parece ser mais tolerado, mesmo que cercado por advertências críticas, por Vainfas4). O livro ainda trata do papel da religião como lente pela qual se observava o mundo na Época Moderna, das transformações culturais – como o Renascimento, o desenvolvimento da imprensa, as reformas religiosas, a nova ciência, o Iluminismo – e dos conflitos, revoltas e revoluções – a Guerra dos Trinta Anos, a Fronda, as revoluções do século XVII nas Ilhas Britânicas e as revoluções atlânticas do século seguinte. Além de oferecer o “estado da arte” em discussões atualizadas, com os clássicos e com a historiografia de ponta – incluindo idiomas e comunidades acadêmicas diversas –, ao fim de cada capítulo há uma bibliografia comentada, ideal para que estudantes de graduação se familiarizem com os debates pertinentes e os aprofundem conforme seu interesse. Meus estudantes gostaram muito do livro e foram “fisgados” pela História Moderna, com sua fascinante amálgama de familiaridade e estranhamento aos olhares contemporâneos. 

Menção especial, na obra coletiva, merece a parte sobre “Espaços e circulações globais”, com capítulos sobre os espaços atlântico e índico, sobre a “modernidade islâmica”, sobre trajetórias de mulheres indígenas e sobre o Leste Asiático, assim como sobre a nova geografia que permitiu a dilatação dos horizontes espaciais dos europeus. O livro possibilita, assim, ampliar os olhares sobre esse período ao redor do globo, sem omitir a pertinência de periodizações distintas para outros contextos. Por exemplo, a China e a Coréia repartem o tempo conforme dinastias e o Japão, pelo período de conflitos intestinos conhecido como Sengoku e pelo xogunato Tokugawa, não coincidentes com a cronologia da Europa. Bruna Soalheiro e Célia Tavares avaliam essas temporalidades distintas no que toca ao Leste Asiático, não sem a advertência de que a presença europeia naquelas plagas, a partir do século XVI, deve ser levada em conta, em sua devida importância, na escrita da história.5 

Vainfas, por seu turno, centra sua análise na Europa. Sem desprezar a importância de outros continentes, o autor destaca o – inegável – protagonismo europeu ocidental “na construção do planeta, em particular da interconexão entre os continentes”.6 As formas diversas pelas quais esse fenômeno tem sido conceitualizado na historiografia e nas ciências sociais – “sistema-mundo moderno”, “capitalismo mercantil” – são devidamente discutidas nas obras em questão. De fato, apenas os mais empedernidos negacionistas seriam capazes de ignorar a obviedade de que foram os europeus que colocaram todos os continentes em contatos e intercâmbios sistemáticos, particularmente a partir da exploração do Novo Mundo. Talvez não fossem os únicos capazes de fazê-lo, mas foram aqueles que o fizeram. 

Tratam-se de respostas possíveis e plurais às interpelações pós-coloniais que têm desafiado as análises da História centradas no continente europeu. O livro de Vainfas e os capítulos da coletânea, respondem, implícita ou explicitamente, a esse alargamento de perspectivas de formas diversas, ora dando maior destaque à Europa, ora às suas colônias ou às regiões que mantiveram-se isentas da intrusão ocidental. Na primeira obra, o autor rejeita o eurocentrismo sem abrir mão do pioneirismo europeu na constituição do espaço mundial moderno. “A Época Moderna” contém capítulos abrangentes de outros locais do globo, sem deslocar a centralidade europeia. Ocorre que enfocar a Europa é muito diferente de tomá-la como parâmetro e modelo único de desenvolvimento histórico. 

Evidentemente, plurais também são as perspectivas dos/as diversos/as autores/as presentes na obra coletiva organizada por Araújo, Doré, Lima, Machel e Rodrigues, aproximando ou distanciando a lente do Velho Mundo. Por exemplo, no capítulo de Andréa Doré e Thomás Haddad sobre a ciência moderna – e todos os “mitos” que a acompanham –, a autora e o autor propõem passar “pela via de uma história global do conhecimento, da ‘nova ciência’ parida pela ‘Revolução Científica’ na Europa, a uma constelação de novos modos de conhecer gerados pela circulação de atores, objetos e ideias”. Assim sendo, “no lugar de uma modernidade epistêmica europeia que se impõe sobre as ‘modernidades alternativas’ e as elimina, ganhamos outra – que jamais foi só da Europa”.7 

Da mesma forma, o capítulo intitulado “Modernidade Islâmica”, de autoria de Otávio Luiz Vieira Pinto e de Thiago Henrique Mota, tem o objetivo de investigar “como as sociedades muçulmanas participaram da construção do que convencionamos chamar de Primeira Modernidade”, a partir do entendimento de que a

ideia de Modernidade precisa ser abordada em escala global. A Modernidade não foi produto de vivências europeias que se espalharam para outras partes (...) ela resulta dos compartilhamentos próprios das experiências humanas, cada vez mais conectadas, como o impacto da grande peste na África, Ásia e Europa demonstrou.8 

Da mesma forma, na quarta capa do livro temos: 

Este manual aborda o período histórico conhecido como Época Moderna, quando as diferentes regiões do globo entraram em contato e em conflito. Buscando superar a narrativa de uma modernidade singular, europeia e ocidental, os capítulos apresentam os múltiplos agentes históricos atuantes do século XV ao XVIII, das mulheres indígenas da América até as sociedades camponesas europeias. Sem deixar de abordar temas clássicos do período, do Renascimento à Revolução Francesa, esta obra revela que a Época Moderna não é o produto de uma, mas de várias modernidades.9 

Diversos autores, dentre os quais se pode destacar Sanjay Subrahmanyam,10 assinalam a contribuições de não-europeus à constituição daquilo que se configurou como “modernidade”. Além disso, outros autores sublinham a existência de modernidades, no plural.11 Entretanto, do ponto de vista do fornecimento de commodities e como parte do processo de acumulação de capital e da emergência de um mercado mundial na época moderna, tais aportes não-europeus já são entendidos há tempos por parte da historiografia como ele-mento-chave do processo de emergência do sistema capitalista.12 O autor indiano, por seu turno, procurou assinalar elementos comuns à Eurásia em uma Primeira Modernidade cujo período de abrangência é por ele recuado ao século XIV, período das conquistas de Tamerlão, originário da Ásia Central. Ocorre que um desses traços reconhecidos como compartilhados foi a difusão de perspectivas milenaristas. Ora, esse aspecto dificilmente poderia ser considerado parte da “modernidade” se formos rigorosos conceitualmente. 

O fato é que não é consensual o uso desse termo, “modernidade”, à época moderna. Vainfas, por exemplo, o rejeita de todo, por estar muito mais associado às vanguardas literárias e artísticas da virada do século XIX para XX e, consoante Habermas e Benjamin, ao mundo burguês, à laicidade e ao predomínio da Ciência em face da Religião. Nada mais distante, portanto, da Época Moderna.13 Pelo contrário, um dos melhores artigos da obra organizada por Araujo, Doré, Lima, Machel e Rodrigues é da pena do último dos organizadores e de Adone Agnolin, dando conta do papel estruturante da religião no período estudado.14 No fim das contas, é possível questionar se “encaixar” a Eurásia em algum tipo de “modernidade” não comporta o risco, no afã de evitar o eurocentrismo, de cair justamente na armadilha eurocêntrica de adaptar o mundo aos parâmetros conceituais da Europa.

Alternativa é a periodização de “Primeira Modernidade” (Early Modern), apresentada em ambas obras a partir da bibliografia anglo-saxã, remetente ao período inicial dos tempos modernos na tripartição Antiga-Medieval-Moderna. Entretanto, “até hoje não se estabeleceu um consenso absoluto no que diz respeito aos marcos cronológicos dessa época”.15 Eles podem recuar ao século XIV – “sobretudo no caso de análises interessadas na região euroasiática”, ecoando Subrahmanyam –, ou ao XV, no caso dos interessados nos impactos do Novo Mundo. Da mesma forma, podem ser alargados a meados do XVII16, do XVIII, com o Iluminismo, ou à Revolução Francesa.17 Porém, ainda nesse caso, devemos estar alertas – todos os autores o estão – à advertência de Ronaldo Vainfas: a periodização “Primeira Modernidade” difere das reflexões filosóficas dos autores, sobretudo alemães, que pensam o conceito “Modernidade” referente aos séculos XX e XXI. 

Essa última Modernidade aparece em uma das cenas do filme Tempos modernos (1936), de Charles Chaplin, expondo o trabalhador “mecanizado” na fábrica, cativo da cadeia de produção em série. O conceito de “Modernidade”, embutido em Tempos Modernos, é relativo à sociedade fabril em tempo de taylorismo e fordismo. Não tem nada a ver com a Idade Moderna que vamos estudar.18 

Não se pretende, é claro, estabelecer aqui notas conclusivas a respeito de um conceito tão cheio de vieses, por vezes atravessados, como “Modernidade”, ou de uma questão complexa como o impacto do eurocentrismo na historiografia da Época Moderna ou em geral. Termino esta breve resenha com a epígrafe que dá início ao livro de Ronaldo Vainfas, que subscrevo: 

A História é um tipo de conhecimento vocacionalmente democrático, aberto à pluralidade de interpretações, desde que amparadas em provas, evidências empíricas, pesquisa, quando menos em possibilidades factuais verossímeis. Se não for assim, não é História, senão ideologia a favor de alguma causa autoritária, não importa qual.19 

Felizmente, os livros em questão são plurais em visões e argumentos. Que possamos desafiar o “eurocentrismo” sem que isso se torne um significante vazio ou mesmo um apelo populista à pluralidade epistêmica ou a um multiculturalismo ecumênico e despolitizado, mas sim um consistente questionamento às nossas formas de produzir e escrever a História. Que possamos encarar a Europa, sim, como mais uma “província” da História,20 mas sem elidir o fato de que foi a “província” que colonizou e subordinou, de forma frequentemente brutal, as demais. 

 

 


Rodrigo de Azevedo Weimer, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 

https://orcid.org/0000-0003-1536-6243

rod.weimer@gmail.com


1 Vainfas, Ronaldo. 2023. A Europa no Antigo Regime: Uma Visão Plural. Rio de Janeiro: Editora Cantagalo. Araujo, André de M., Doré, Andréa, Lima, Luís F. S., Machel, Marília de A. R. e Rodrigues, Rui L. (orgs). A Época Moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 2024. 

2 Le Goff, Jacques. A História Deve Ser Dividida em Pedaços? São Paulo: Editora Unesp, 2015. 

3 Melo, Bruno K. S. M. de, Machel, M. de A. R. Sistemas políticos e estruturas de poder. In: Araujo, André de M., Doré, Andréa, Lima, Luís F. S., Machel, Marília de A. R. e Rodrigues, Rui L. (orgs). A Época Moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 2024, p. 97-127. 

4 Vainfas, Ronaldo. A Europa no Antigo Regime: Uma Visão Plural. Rio de Janeiro: Editora Canta-galo, 2023, p. 93-114. 

5 Soalheiro, Bruna, Tavares, Célia. O Leste Asiático. In: Araujo, André de M., Doré, Andréa, Lima, Luís F. S., Machel, Marília de A. R. e Rodrigues, Rui L. (orgs). A Época Moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 2024, p. 285-316. 

6 Vainfas, Ronaldo. A Europa no Antigo Regime: Uma Visão Plural. Rio de Janeiro: Editora Canta-galo, 2023, p. 10. 

7 Doré, Andréa e Haddad, Thomás A. S. A nova ciência. In: Araujo, André de M., Doré, Andréa, Lima, Luís F. S., Machel, Marília de A. R. e Rodrigues, Rui L. (orgs). A Época Moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 2024, p. 468. 

8 Pinto, Otavio L. V., Mota, Thiago H. A modernidade islâmica. In: Araujo, André de M., Doré, An-dréa, Lima, Luís F. S., Machel, Marília de A. R. e Rodrigues, Rui L. (orgs). A Época Moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 2024, p. 239. 

9 Araujo, André de M., Doré, Andréa, Lima, Luís F. S., Machel, Marília de A. R. e Rodrigues, Rui L. (orgs). A Época Moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 2024, quarta capa 

10 Subrahmanyam, Sanjay. Historias conectadas. Notas para una refiguración de Eurasia en la moder-nidad temprana. Prohistoria. Año XXIII, núm. 33, 2020. 

11 Por exemplo, Darwin, John.. Ascensão e queda dos Impérios Globais. 1400-2000. Lisboa: Edições 70, 2015. 

12 Wallerstein, Immanuel. El moderno sistema mundial. La agricultura capitalista y los orígenes de la economía-mundo europea en el siglo XVI. México; Buenos Aires: Siglo XXI, 2011; Wallerstein, Imma-nuel. 2011. El moderno sistema mundial. El mercantilismo y la consolidación de la economía-mundo europea, 1600-1750. México; Buenos Aires: Siglo XXI, 2011. 

13 Vainfas, Ronaldo.. A Europa no Antigo Regime: Uma Visão Plural. Rio de Janeiro: Editora Canta-galo, 2023, p. 15-16. 

14 Agnolin, Adone; Rodrigues, Rui L. O papel estruturante da religião. In: Araujo, André de M., Doré, Andréa, Lima, Luís F. S., Machel, Marília de A. R. e Rodrigues, Rui L. (orgs).A Época Moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 2024, 67-96. 

15 Araujo, André de M., Doré, Andréa, Lima, Luís F. S., Machel, Marília de A. R. e Rodrigues, Rui L. 2024. Uma introdução. In: Araujo, André de M., Doré, Andréa, Lima, Luís F. S., Machel, Marília de A. R. e Rodrigues, Rui L. (orgs). A Época Moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 2024, p. 13. 

16 Vainfas, Ronaldo. A Europa no Antigo Regime: Uma Visão Plural. Rio de Janeiro: Editora Canta-galo, 2023, p. 16. 

17 Araujo, André de M., Doré, Andréa, Lima, Luís F. S., Machel, Marília de A. R. e Rodrigues, Rui L. Uma introdução. In: Araujo, André de M., Doré, Andréa, Lima, Luís F. S., Machel, Marília de A. R. e Rodrigues, Rui L. (orgs). A Época Moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 2024, p. 13. 

18 Vainfas, Ronaldo. A Europa no Antigo Regime: Uma Visão Plural. Rio de Janeiro: Editora Canta-galo, 2023, p. 17. 

19 Vainfas, Ronaldo. A Europa no Antigo Regime: Uma Visão Plural. Rio de Janeiro: Editora Canta-galo, 2023, p. 5. 

20 Chakrabarty, Dipesh. 2008. Al margen de Europa. Pensamiento poscolonial y diferencia histórica. Barcelona: Tusquets Editores. 


Referências bibliográficas 

Araujo, André de M., Doré, Andréa, Lima, Luís F. S., Machel, Marília de A. R. e Rodrigues, Rui L. (orgs). A Época Moderna. Rio de Janeiro: Vozes, 2024. 

Darwin, John. Ascensão e queda dos Impérios Globais. 1400-2000. Lisboa: Edições 70, 2015. 

Chakrabarty, Dipesh. Al margen de Europa. Pensamiento poscolonial y di-ferencia histórica. Barcelona: Tusquets Editores, 2008. 

Subrahmanyam, Sanjay. Historias conectadas. Notas para una refiguración de Eurasia en la modernidad temprana. Prohistoria. Año XXIII, núm. 33, 2020 

Vainfas, Ronaldo. A Europa no Antigo Regime: Uma Visão Plural. Rio de Janeiro: Editora Cantagalo, 2023. 

Wallerstein, Immanuel. El moderno sistema mundial. La agricultura capita-lista y los orígenes de la economía-mundo europea en el siglo XVI. México; Buenos Aires: Siglo XXI, 2011.